O obstáculo no caminho de discernimento espiritual e seus remédios

por Diácono Georges Bonneval

 

 
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Neste mês de fevereiro começa, para a Igreja, o ciclo do tempo da Quaresma, um tempo litúrgico propício para ir ao encontro do Senhor, sem o desejo de todo o “conforto” espiritual, mas aceitando considerar que este caminho passa pelos lugares escarpados, pedregosos, penosos e, por vezes, surpreendentes, do deserto. Todas as experiências bíblicas do deserto são fundadoras de uma relação com Deus, nupcial e renovada. Por meio dos profetas, Deus parece mesmo ter uma santa “saudade” dessas passagens do povo de Israel no deserto: “Quando Israel era menino, eu o amei e do Egito chamei meu filho.” (Os 11,1).

Os obstáculos objetivos à vida espiritual e ao discernimento dos chamados de Deus, encontramo-los mencionados nos Evangelhos. São obstáculos suscetíveis de dificultarem a nossa correspondência à vontade divina e, até, de impedi-la. Enumerando-os, não se trata, no entanto, de nos afligirmos de maneira exagerada, mas de descobrirmos os caminhos de Deus, através da ascese e das renúncias habituais, numa vida em Cristo.

O relato da tentação de Jesus no deserto, que meditamos no início de cada quaresma – destaca três obstáculos, tentações, suscitadas pelo diabo para pôr à prova, desde o início, o Senhor e a Sua missão.

Estas três tentações parecem “genéricas” porque elas resumem-nos todas as formas de concupiscências humanas:

- A tentação dos bens terrestres ou o desejo de possuir, concupiscência da carne…

- A tentação do sucesso ou da sede de aparecer, concupiscência do orgulho humano…

- A tentação do poder e a ambição de dominar, concupiscências das riquezas…

 

Elas também são citadas por S. João (em 1 Jo 2,16) como as três “concupiscências” que agem neste mundo: “Porque tudo o que há no mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho da riqueza – não vem do Pai, mas do mundo”.

Estas três raízes malignas apresentam-se como ídolos que se atualizam em cada geração; põem à prova o caminho do crente. Sem dúvida, foram todas vencidas por Cristo, pela arma da Sua Palavra e, depois, sobre a Cruz da Sua Redenção. Contudo, o discípulo do Senhor deverá, permanecer atento e vigiar no combate espiritual.

A Tradição espiritual, desde os Padres da Igreja, fez a ligação entre as três tentações de Cristo no deserto e os três  conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência, como um triplo dom espiritual de Cristo, e o antídoto para as três concupiscências malignas.

 

Sto. Inácio de Loyola, nos seus Exercícios Espirituais, convida cada retirante a refletir e a rezar com estes conselhos evangélicos, para pegar nas armas que Cristo nos oferece e para combater estas tentações:

O primeiro, pobreza contra riqueza; o segundo, o próbrio ou desprezo contra a honra mundana; o terceiro, humildade contra a soberba; e destes três escalões induzam a todas as outras virtudes.” (Sto. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, nº146)

- O conselho da pobreza acalma os nossos desejos de possuir os bens terrestres… ajuda-nos a usar esses bens, como um caminhante, parado numa hospedaria, mas que sabe que, em breve, deve partir…

- O conselho de castidade afasta a sede de sucesso e de aparecer… A humildade e a discrição estão ligadas à graça da castidade que recusa ver o outro como um bem de consumo…

- O conselho de obediência, trata da tentação de poder e de dominação sobre os outros… nos liberta de buscar ter sempre razão e convida à escuta, à submissão, à compreensão dos outros…

 

Graças a esses conselhos, as pessoas tornam-se interiormente mais livres face aos ídolos modernos que enfraquecem o sentido autêntico da vida e recuperam as energias interiores de muitos.

Por isso, a vida do discípulo de Cristo, requer uma certa ascese e um dom de si mesmo para viver esses conselhos evangélicos: para tornar-se pobre em espírito e em verdade, amar à maneira de Cristo, para renunciar à sua vontade

própria e para aceitar a vontade de um outro por amor a Deus, mesmo quando esse outro representa de maneira imperfeita o sinal da vontade de Deus.

 

Não é necessária uma pobreza teórica, mas a pobreza que se aprende tocando a carne de Cristo pobre, nos humildes, nos pobres, nos enfermos e nas crianças.” (Papa Francisco, 8 de março de 2014, Discurso no Simpósio Internacional sobre “A gestão dos bens eclesiásticos dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica ao serviço do ‘Humanum’ e da missão da Igreja”)

Se os Evangelhos centram a atenção sobre os obstáculos dos apegos aos bens (exteriores e afetivos), o Apóstolo S. Paulo, por sua vez, reúne uma lista dos “frutos da carne” em particular em Gl 5,19-21: “Ora, as obras da carne são manifestas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, rixas, ciúmes, ira, discussões, discórdia, divisões, invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos previno, como já vos preveni: os que praticam tais coisas não herdarão o Reino de Deus.”

 

A partir daí, a Tradição monástica – com o acompanhamento dos candidatos à vida religiosa – vem trazer à luz a problemática do mal e do pecado. No século VI, dando sequência aos escritos monásticos de Evágrio e de João Cassiano, o Papa Gregório Magno, formalizou a classificação desses vícios sob a forma de um tratado chamado “Pecados capitais”. Na sua redação, S. Gregório desenvolve o seu pensamento e dá um esquema dos diferentes vícios com os quais o ser humano é confrontado. Ele reduz o número a sete principais (sendo encabeçados por um chefe: o orgulho). Este tratado inclui, na época medieval, o conjunto de tentações e de pecados que impede o crescimento espiritual de cada um.

 

A redação de “Moralia in Job”, por S. Gregório, estende-se por um período de mais de cinco anos. Começada em 579, na época em que Gregório era monge, a redação prolongou-se até ao final do seu pontificado. Como pastor, desejou tornar esse ensino acessível e prático, não só para a vida monástica, mas para toda a cristandade.

Eis a apresentação que S. Gregório faz dos sete pecados capitais:

Com efeito, entre os vícios que nos tentam e travam contra nós um combate invisível ao serviço do orgulho, que reina sobre eles, uns marcham à frente, como chefes, e outros seguem-no como tropas. (…) Quando aquele que reina sobre todos os vícios, o orgulho, dominou um coração e dele tomou posse plenamente, entrega-o, imediatamente, aos sete vícios capitais como seus comandantes, para que eles o devastem. (…) A raiz, de fato, de todo o mal, é o orgulho, como confirma

a Escritura: o começo de todo o pecado é a soberba. Os primeiros rebentos que saem desta raiz venenosa são, certamente, os sete vícios capitais: quer dizer, a vanglória, a inveja, a cólera, a tristeza, a avareza, a gula, a luxúria.” (“Moralia in Job”, de S. Gregório Magno)

 

Este estudo das “paixões da alma” abre um caminho a uma real reflexão e a um trabalho sobre si mesmo, no sentido de um discernimento. No entanto, cada um deverá começar esse trabalho e procurar uma resposta adequada, não sozinho, mas com a ajuda de um acompanhador espiritual.

Porque, precisamente, o que parece definir “uma paixão da alma”, é o seu lado irracional, a sua impermeabilidade à Palavra e ao raciocínio (quer venha de um outro ou de si mesmo), saindo da razão profunda.

Nesse sentido, é preciso que cada um busque a transformação espiritual do seu ser profundo, pelo acolhimento da graça, em vez de insistir no exercício tenso da erradicação de certos comportamentos. As virtudes evangélicas, apresentadas como um espelho para a alma, inspiram a força do Espírito para avançar nesta transformação interior.

 

Do mesmo modo que S. Paulo, logo depois de ter listado os frutos da carne, propõe os “frutos do Espírito” (cf. Gl 5,22), nunca nos devemos esquecer dos auxílios e das armas da graça, através das “sete virtudes” opostas aos vícios: as três “virtudes teologais” recebidas como dons no Batismo: a fé, a esperança e a caridade; e as quatro “virtudes cardeais” que são: a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança. S. João da Cruz constata, na sua época, (no século XVI) que muitas almas na provação não compreendem o que lhes acontece e, na sua aflição, arriscam-se a não corresponder à ação divina da graça. Foi por isso que ele quis, através dos seus escritos, clarificar estas questões profundas das noites e das purificações que Deus permite. Isto não quer dizer que o caminho da vida espiritual é unicamente fonte de sofrimento purificador! O próprio João da Cruz, viveu os episódios mais difíceis da sua noite no calabouço de Toledo, faminto e oprimido pelos maus tratos.

Nas nossas vidas, não faltam situações de sofrimento: doenças, acidentes, dificuldades de todos os tipos no plano familiar, social, profissional… Mas quando elas surgem no caminho da vida espiritual, podem tornar-se ocasião e matéria para a purificação e o desprendimento da alma.

No meio dessas provações de origem exterior, desenvolve-se em paralelo, no segredo do coração, uma ação purificadora de Deus, que pode conduzir à alegria e à paz da união. “Compreendei que, para amar Jesus, ser Sua vítima de amor, quanto mais se é fraca, sem desejos, nem virtudes, mais se é propícia às operações desse Amor que consome e transforma… Basta apenas o desejo de ser vítima, mas é preciso consentir em ficar pobre e sem força, e aqui está o mais difícil pois, ‘onde  encontrar o verdadeiro pobre em espírito? É preciso ir buscá-lo bem longe’, disse o Salmista.” (Sta. Teresa do Menino Jesus, Carta 197)

 

Doce Maria, eu não temo essa tarefa,

Minha boa vontade, vós a conheceis;

Tenho defeitos, mas também coragem

E a grande caridade das irmãs.

Enquanto espero o meu dia das núpcias

Suas belas virtudes vou imitar

E sinto bem, que vós me dareis forças

Para tornar-me esposa de Jesus.”

(Sta. Teresa do Menino Jesus, Poesia 11)

 

Que estas energias interiores em cada um de nós, essas paixões da alma, diagnosticadas durante este tempo da Quaresma, se tornem energias para a vida de Deus e não mais para a morte a serviço do pecado! Que Nosso Senhor obtenha, para cada um, grandes vitórias e uma constante paciência!