No diálogo de acompanhamento, algumas instâncias (as dos superegos transferenciais) devem ser desmascaradas

No diálogo de acompanhamento, algumas instâncias (as dos superegos transferenciais) devem ser desmascaradas

Do livro de Dom André Louf: “A Graça pode fazer mais”, sobre o acompanhamento espiritual.

O monge trapista Dom André Louf (1929-2010) escreveu um notável livro sobre acompanhamento espiritual “La grâce peut d’avantage”, “A graça pode fazer mais” no qual, ele enfatiza a dimensão do diálogo de acompanhamento. Ele desenvolve dois aspetos que estão envolvidas neste diálogo, que são reconhecíveis tanto no acompanhador como no acompanhado. Tratam-se de instâncias que exercem uma certa “autoridade, um estranho poder”, quase sempre inconsciente, através do psiquismo de cada pessoa.

Para descrevê-lo, através de uma imagem, Dom Louf nomeia estas duas instâncias usando a linguagem simbólica do “policial interior” e do “espelho interno”. Segundo o autor, essas duas autoridades são próximas uma da outra, mas não se identificam plenamente, pois o papel de cada uma delas permanece bastante distinto na evolução psicológica concreta.

Neste texto, trataremos apenas da primeira instância, a do “policial interior”, traduzindo tão fielmente quanto possível a escrita e o pensamento do autor.

Quer queiramos quer não, explica o autor, o nosso coração dissimula alguns pequenos ídolos, diante dos quais não cessamos de queimar o incenso e que um acompanhamento espiritual deve ajudar progressivamente a desmascarar. Hoje em dia a psicologia pode dar outros nomes a essas instâncias psíquicas, citando-as, por exemplo, como instâncias “narcisistas” ou “manipuladoras”.

Do lado da vida espiritual, seria certamente uma questão de vermos aí as tendências carnais conhecidas como pertencentes ao “homem velho”, identificadas como tal, pelo Apóstolo Paulo (cf. Rm 6, 6; Ef 4, 22; Cl 3, 9). O autor afirma que estas instâncias são estruturas normais, inerentes a todo psiquismo sadiamente construído, sem os quais ninguém poderia viver ou respirar psiquicamente. O seu papel é problemático quando invade as relações humanas de forma abusiva; nesse caso, essas tendências vêm perturbar a evolução normal da pessoa, tanto mental quanto espiritualmente.

É indispensável não só conhecer a sua existência, mas também ter alguma experiência concreta delas, tanto em si mesmo como nos outros. “Pegaremos em flagrante delito” tanto o nosso próprio “policial interior” quanto do nosso interlocutor.

A transferência, risco do diálogo de acompanhamento

Digamo-lo com insistência, estas instâncias interferem continuamente o diálogo espiritual, a escuta, mesmo se queremos permanecer objetivos e desprendidos. Porque não devemos escondê-lo de nós mesmos: ao pretendermos acolher as confidências de outrem, entramos como invasores numa área que geralmente é reservada a essas autoridades; este lugar é “dele” e aí, pretende exercer uma dominação tranquila, um controle defensivo, para não dizer, às vezes, uma verdadeira tirania!

Desejos, tentações, atos bons ou maus, honestidade ou desonestidade, virtudes ou vícios, essas instâncias sabem perfeitamente do que se trata e podem reagir, de forma violenta ou sutilmente, mas na maioria das vezes de forma muito eficaz, contra a intrusão indevida de um terceiro que gostaria de ser acolhido, supostamente “como neutro”, diante de um domínio que durante muito tempo controlaram e julgaram...

Estas instâncias podem desempenhar um papel análogo quando se trata de Deus, e especialmente com a imagem que cada um construiu Dele, que muitas vezes torna-se apenas um “ídolo”, mais ou menos bem sucedido e em cuja fabricação estas duas autoridades têm colaborado ativamente.

Devemos saber que realmente existem em nós, estes são nossos “falsos deuses”, e que não é fácil desalojá-los. São ídolos, moldados pelo nosso inconsciente “à nossa imagem e semelhança!”, à imagem de quem nós somos à nível psíquico.

Uma vez que estas instâncias estão muito ligadas ao seu papel, ou melhor, como nós estamos muito apegados a elas sem o sabermos, um dos problemas fundamentais de qualquer escuta de acompanhamento será identificá-las e neutralizá-las o máximo possível. O verdadeiro Deus, de fato, está além ou acima desses ídolos, mas nunca no lugar que eles ocupam indevidamente.

O “policial interior”

A primeira instância que encontramos no nosso caminho foi denominado, com um certo humor, de “policial interior”. Para algumas pessoas, este policial é tão abusivo que preferem chamá-lo de “juiz interior, ou tirano e até mesmo de carrasco interior” ! Isto não ocorre sem a conivência com nossos ídolos, pois este “policial” se situa e entra em ação no próprio lugar onde somos chamados a escutar Aquele que chamamos “Mestre Interior”, o Espírito Santo. Este policial, é de certa forma, o usurpador e abusador do lugar e do papel do Espírito de Deus em nós.

Quem é ou o que é? No inconsciente de cada um de nós, desde muito cedo, ocorreu uma espécie de cristalização de marcas e ecos, deixada por toda autoridade exercida sobre nós. A psicologia chama isto de “superego” ou “super-eu”, uma autoridade interior que desempenha um papel importante não só na vida de cada ser humano, mas também na elaboração progressiva de uma cultura comum e da moral que dela resulta.

Esta cristalização do ser psíquico – o homem velho – é o resultado de um processo complexo, porque todos os tipos de ecos (ou vozes interiores) se encontram ali agrupados: o eco das ordens e proibições que nos foram dirigidas; o eco dos castigos a que fomos sujeitos; o eco das faltas de que fomos acusados; o eco das injustiças experimentadas e sofridas, o eco dos nossos sistemas de defesa, etc.

Qual foi a autoridade mais marcante para ti

É óbvio que essa instância interior está particularmente ligada às memórias inconscientes que todos guardaram de seu pai – ou de seu avô ou tio – que lhe ditaram as primeiras proibições importantes e constitutivas de sua personalidade. Este pai – ou seu representante – revela-se plenamente pai, no fato de proibir, e se for recebido e assimilado no amor, marcará para sempre a psicologia do filho.

Os traços de autoridade paterna não são os únicos fatores determinantes. Outras autoridades sucederam-lhe e continuaram a moldar a identidade particular do “policial interior”. Tudo o que sempre tomou a forma de autoridade na vida da criança e do adolescente: professores, líderes de movimentos, sacerdotes e diretores espirituais, o pai-professor, os superiores religiosos, etc.

O mesmo se aplica ao papel da mãe que, até certo ponto, foi capaz de suplantar o, mais ou menos apagado, papel do pai. A partir de agora, tudo na vida está relacionado com: a virtude ou o vício, a correção externa ou a boa educação, está praticamente sob o controle, inconsciente é claro, do “policial interior”. É ele quem, ainda hoje, atua como oficial de justiça, proíbe algumas coisas e avalia outras (do tipo: “isto é bom, isto é mau” ).

Às vezes, ele impede a ação, consegue fazer tudo para falharmos, manipula e influencia, ou ameaça e alimenta o medo. E chega ao ponto de punir e administrar alguns “tapas morais”. Acima de tudo, ele será capaz de despertar e manter fortes sentimentos de vergonha e culpa. Mas o “policial” trai-se, especialmente, no vocabulário por ele usado. É desmascarado em muitas fórmulas estereotipadas, usadas comumente, que introduzem uma demonstração “direta” do policial e das suas exigências: “Eu deveria ter...”, “Não me é permitido...”, “É impensável que...”, “Devia ter vergonha de mim mesmo por...”, “Falhei em todos os meus deveres ao...”, “Por favor, desculpem-me por...”, “Tenho medo de...”, “Tenho medo que...”, etc.

Necessidade de uma justa distância

Isto requer que o acompanhador se distancie do seu próprio policial, para poder resistir a possíveis reações, ou pelo menos para poder geri-las. Isto pressupõe, por parte do acompanhador, a experiência do contato com seu ser profundo, da inteligência do que significa “conhecer-se a si mesmo” e “deixar-se conduzir pelo Espírito Santo”.

Do mesmo modo, para a pessoa acompanhada, a relação com o seu próprio “policial interior” manifesta-se pela forma como ele aborda o acompanhador, saudando-o ou ignorando-o, apertando-lhe a mão ou mantendo-o à distância, falando ou se mantendo calado num  mutismo, instalado no seu lugar ou permanecendo de pé; em resumo, pela forma como a pessoa concretamente se relaciona com o seu acompanhador.

A história da autoridade na vida da pessoa e os sentimentos que a acompanham ditarão essas reações impulsivas. Um inevitável trabalho de identificação entra em jogo: o acompanhador descobre e discerne gradualmente as características do “policial interior” no seu acompanhado. Esta identificação pode se revelar complicada pelo fato de que, dentro da relação, um “policial interior” é ativado não só na pessoa que está sendo acompanhada, mas também na pessoa que a acompanha.

É evidentemente importante que o acompanhador perceba isso e seja um pouco familiarizado com as características do seu próprio “policial interior”. Caso contrário, será inevitável que os dois policiais tenham dificuldade de entrar em diálogo, podendo mesmo, deparar-se rapidamente em conflito. Um diálogo e um conflito, no princípio certamente inconscientes, mas cujos efeitos podem ser negativos, sem um certo discernimento.

O “policial interior” do acompanhado não deve provocar o “policial interior” do acompanhador!

Na medida em que esta última condição é insuficientemente cumprida, o acompanhador escutará inevitavelmente tudo o que lhe foi confiado, com os ouvidos do seu “policial interior”. Então ele corre um sério risco de ser irresistivelmente arrastado, deixando o seu “policial  interior” assumir o comando e, por sua vez: ele julgará, ameaçará, amedrontará, despertará sentimentos de vergonha e culpa: “Você devia ter vergonha!”.

E mesmo que ele se esforce em guardar o silêncio e consiga não expressar oralmente os seus sentimentos, os assaltos interiores do seu próprio policial serão mais do que suficientes para estragar o clima de acolhimento e de gratuidade incondicional que deve reger este acompanhamento e dar-lhe a qualidade da escuta no Espírito.

É então que a pessoa acompanhada se sentirá mal, na medida em que se sentirá confusa de que seu próprio “policial interior” está sendo duramente atingido pelas reações psicológicas que transpiram do seu acompanhador: terá vergonha, se sentirá culpado e procurará caminhos para expiar e reaver o apreço dele.

E eis o Espírito de Deus, o Mestre interior, contristado (cf. Ef 4, 30)

O resultado será simples, imediato, mas decepcionante: o Mestre interior, o Espírito Santo, dificilmente poderá emergir no coração da relação, para exercer a Sua ação iluminadora e salvífica sobre as expectativas confiadas durante a escuta.

Haverá um diálogo, mas ele será sequestrado como um “refém” do “policial interior”, de ambos os lados, tanto do acompanhador como do acompanhado, os dois no mesmo nível psíquico. Este diálogo só pode reforçar todos os sentimentos negativos que envolveram a expectativa da pessoa acompanhada.

O silêncio repleto de amor, deveria ter acolhido a confissão de seu acompanhado, o que teria permitido um nível mais profundo, para que a pessoa pudesse se abrir. Neste caso, o acompanhador se encontra como se estivesse envolvido em um confronto que acontece, tanto dentro da pessoa que está sendo acompanhada, como dentro da relação com ela. Nesta confusão, quer queira ou não, o acompanhador está agora envolvido e é como “refém” desta armadilha. E o resultado deste confronto dependerá em grande parte da sua atitude. Ele próprio não sairá ileso.

O que é este confronto? É simples. Em termos tradicionais, diremos que será uma questão de corrigir uma consciência distorcida e substituí-la por uma consciência reta. Em termos psicológicos – e mais próximos da realidade espiritual – diríamos que se trata de neutralizar a influência nociva do “policial interior” ou do superego, e permitir ao Espírito Santo de invadir este espaço, graças ao amor, a um certo discernimento e à paciência da escuta.

No entanto, o homem, a vida profunda correm sempre o risco de serem sufocados pelo “policial interior”, enquanto que o Espírito Santo e a Sua Lei de Amor são a única fonte da sua verdadeira vida.

O Acompanhador deve recusar qualquer transferência, tal como ser “refém”

Para que o confronto seja positivo, a primeira condição é que o acompanhador não se coloque num modo de escuta “conivente e fusional”. Nem, por outro lado, se coloque numa “postura de julgamento”. Porque, em ambos os casos, ele se deixa “instalar na casa do outro”, colocando-se inevitavelmente no lugar do seu “policial interior”, o que promove uma lamentável identificação com ele.

Esta armadilha nem sempre é evitada pelo acompanhador, e por isso ei-lo aqui num ciclo vicioso, do qual será difícil para ele escapar. O acompanhador se encontra anexado à “síndrome” da pessoa que está sendo acompanhada, se assim podemos dizer.

Naturalmente, ele poderá sempre tentar gastar seu tempo com discursos, conselhos e informações de ordem moral. Pode proibir, autorizar, encorajar, apelar ao sentido de responsabilidade, todas estas coisas que geralmente não fazem mal, mas que, neste caso, não farão bem nenhum.

Note-se também que a pessoa acompanhada, sem o saber, colabora na implementação desta armadilha psicológica sob os passos do seu acompanhador. Ela fará todo o possível para anexá-lo e torná-lo cúmplice de seu “policial interior”. No fundo, esta é a situação mais confortável para ela. Pois, para o acompanhado, mesmo se o seu desejo de mudança seja explícito e sincero, no fundo do seu ser, ele ainda não está realmente disposto a progredir.

Se o acompanhador, apesar de tudo, não ceder à chantagem psicológica, a pessoa acompanhada pode acabar abandonando seu acompanhador, para buscar, num outro lugar, um guia talvez menos conhecedor, mas dotado de “policial interior” mais complacente do que o seu.

Em vez disso, escutai a obra interior da graça

Pelo contrário, o acompanhamento deve ser o “contrapeso” graças ao qual se tornou possível escapar à influência da autoridade do superego, esquivar-se das suas características passando por assim dizer, por trás dele, ao invés de enfrentá-lo de frente. Isso teria permitido descer numa maior profundidade de alma da pessoa acompanhada, a fim de enfrentar o complexo fervilhar de seus desejos, que são ameaçadores, apenas aparentemente. Porque é aí que a graça nos espera, tanto no profundo do nosso coração, que fervilha de todos estes desejos, como na mais extrema fraqueza humana.

No entanto, toda a tática do “policial interior” é precisamente fazer-nos evitar este momento de verdade e esconder a fraqueza humana. É fazer crer que, sob certas condições - isto é, respeitando o sistema de proibições que ele mesmo instituiu e que justifica para aqueles que querem ouvi-lo – que é possível estar “em ordem” e representar ser o homem ou cristão virtuoso, satisfeito e satisfatório, tranquilizado e tranquilizador.

Somos agora mais conscientes da extrema importância das primeiras palavras pronunciadas pelo acompanhador após uma confidência de seu acompanhado. Estas primeiras reações e palavras podem ter consequências incalculáveis. São elas que vão estabelecer a relação num certo sentido, e decidir o que fazer em seguida, de positivo ou negativo. Por isso, é importante pesá-las cuidadosamente e falar apenas com sabedoria, evitando qualquer coisa que possa levar a uma colisão entre o acompanhador e o “policial interior” do acompanhado.

Regra geral, o acompanhador é muito apressado para falar

Como qualquer palavra é particularmente arriscada, é quase sempre preferível, nos acompanhamentos, ter um longo momento de escuta e silêncio antes de falar.

“Que cada um esteja pronto para ouvir, mas lento para falar e lento para encolerizar-se.” (Tg 1, 19)

Para ilustrar de outra forma as ações do “policial interior”, leiamos de novo uma história (um “apotegma”), que pertence à literatura monástica antiga. Esta literatura, naturalmente, ignora o conceito de “super-eu” ou da imagem do “policial interior”. O discernimento que ela propõe mostra o quanto os antigos monges tinham consciência da devastação causada por sentimentos de culpa que nada têm a ver com o “verdadeiro arrependimento”.

Um apotegma¹ dos monges do deserto (ver nota):

“Um irmão habitando no deserto da solidão, por instigação do diabo, caía, muitas vezes, no pecado da luxúria. Mas ele não cessou de usar a violência para abandonar seu hábito, e durante seu modesto ofício de oração, orava a Deus com gemidos, dizendo: ‘Senhor, que eu queira ou não, salva-me, porque eu, cinzas que eu sou, amo o pecado, mas Tu, impede-me, agindo como Deus Todo-Poderoso. Pois não há nada de extraordinário em teres misericórdia dos justos, e nada de admirável em salvar aqueles que são puros, pois eles são dignos da Tua misericórdia. Mas em mim, Mestre, derramai as Vossas misericórdias, e mostrai o Vosso amor pelo homem, porque em Vós os pobres podem se abandonar’.

Era o que ele costumava dizer o tempo todo, quer tivesse sucumbido ou não. Ora, uma vez, tendo caído, tendo sucumbido ao seu vício mais inveterado, levantou-se imediatamente e começou o seu ofício de oração. Mas o diabo, espantado com a sua confiança e ousadia, apareceu-lhe e disse: ‘Ao salmodiares, como não te envergonhas de estar diante de Deus e pronunciar o Seu nome?’ O irmão respondeu: ‘Juro-te, em nome Daquele que veio salvar os pecadores e chamá-los à penitência, que não deixarei de orar a Deus contra ti até que deixes de me fazer guerra. E veremos quem ganhará, tu ou Deus’. A estas palavras, o diabo disse-lhe: ‘Com certeza, agora não farei mais guerra contigo, para não te dar uma coroa com a tua perseverança’.”

Eis como a paciência é boa, ela que não se desanima jamais, mesmo que muitas vezes caiamos em lutas, pecados e tentações. O referido irmão neste apotegma já parece ter uma profunda experiência de arrependimento. A oração que ele dirige ao Senhor depois de suas quedas o expressa perfeitamente. No entanto, ele foi assediado por outra voz nele, que sugeria que ele deveria ter vergonha de orar no estado em que se encontrava. Bem inspirado, o irmão não cederá, porque está demasiado seguro da misericórdia de Deus.

O apotegma atribui ao diabo a voz que alguns poderiam ter sido tentados a se identificar com a “voz da consciência”. A atribuição feita pelo apotegma é correta. Essa é obviamente a voz “culpada” do “policial interior”, que o diabo sabe perfeitamente como usar, para empurrar o pecador no desânimo. A forma determinada como este monge consegue evitar a armadilha é notável.

“Humilhai-vos sob a poderosa mão de Deus, para que na ocasião própria vos exalte; lançai sobre Ele toda a vossa preocupação, porque é Ele que cuida de vós. Sede sóbrios e vigilantes! Eis que o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procurando a quem devorar. Resisti-lhe, firmes na fé, sabendo que a mesma espécie de sofrimento atinge os vossos irmãos espalhados pelo mundo. Depois de terdes sofrido um pouco, o Deus de toda a graça, aquele que vos chamou para a sua glória eterna em Cristo, vos restaurará, vos firmará, vos fortalecerá e vos tornará inabaláveis.” (1Pd 5, 6-10)

O que havia na pessoa deste monge como um lugar interior mortífero tornou-se um pretexto para a graça. Neste sentido, a misericórdia precede e transborda nossas estreitas teorias teológicas legalistas, levando-nos ao acontecimento da mudança interior. Contudo, o poço secreto das lágrimas de arrependimento só é desselado, apenas sob o efeito da graça, libertando então, o homem por uma Palavra ou um ensinamento que é como o seu anúncio. Nesta água penitencial se reflete a imagem do homem reunificado no amor, e não mais prisioneiro em seus desejos centrífugos por sua própria justiça.

Ao contrário do “policial”, o único Mestre interior, o Espírito Santo, não julga, não condena nem castiga. Pelo contrário, levanta o pecador, acaricia-o e consola-o: “Eu vos digo que, do mesmo modo, há mais alegria diante dos anjos de Deus por um só pecador que se arrepende” (Lc 15, 10). É o verdadeiro arrependimento, que inunda de alegria o pecador perdoado.

1 A palavra “apophtegme”: do grego antigo ἀπόφθεγμα (apóphthegma) significa “preceito, frase”, é uma palavra memorável com o valor de uma máxima. Aqui, apotegma citado de: “Les Sentences des Pères du Désert”, Nouveau recueil, Solesmes, 1970, no 582.