Compreender o mal e o pecado através do olhar de Deus | Palavra do fundador - MARÇO 2023

Esse tempo da Quaresma que se inicia nos convida, como vimos no mês precedente, a vários níveis de conversão, mas é igualmente necessário considerar nossa maneira de apreender o mal e o nosso próprio pecado. E isto deve ser feito “sob o olhar de Deus” e à luz de Sua Palavra.

Na primeira Carta de São Pedro, recebemos uma primeira iluminação, uma orientação pastoral e um conselho do Apóstolo:

“Humilhai-vos sob a poderosa mão de Deus, para que na ocasião própria vos exalte; lançai Nele toda a vossa preocupação, porque é Ele que cuida de vós. Sede sóbrios e vigilantes! Eis que o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procurando a quem devorar. Resisti-lhe, firmes na fé, sabendo que a mesma espécie de sofrimento atinge os vossos irmãos espalhados pelo mundo. Depois de terdes sofrido um pouco, o Deus de toda a graça, aquele que vos chamou para a Sua glória eterna em Cristo, vos restaurará, vos firmará, vos fortalecerá e vos tornará inabaláveis. A Ele seja todo o poder pelos séculos dos séculos! Amém.” (1Pd 5, 6-11)

O Apóstolo Paulo, escrevendo aos efésios, recomenda que eles vivam o combate espiritual com uma linguagem figurada, mas sem equívoco:

“Finalmente, fortalecei-vos no Senhor e na força do Seu poder. Revesti-vos da armadura de Deus, para poderdes resistir às insídias do diabo. Pois o nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as Autoridades, contra os Dominadores deste mundo de trevas, contra os Espíritos do Mal, que povoam as regiões celestiais. Por isso deveis vestir a armadura de Deus, para poderdes resistir no dia mau e sair firmes de todo o combate. Portanto, ponde-vos de pé e cingi os rins com a verdade e revesti-vos da couraça da justiça e calçai os pés com o zelo para propagar o Evangelho da paz, empunhando sempre o escudo da fé, com o qual podereis extinguir os dardos inflamados do Maligno. E tomai o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus.” (Ef 6, 10-17)

O suíço e Cardeal-teólogo Charles Journet (1891- 1975) trabalhou exaustivamente em seus escritos e palestras sobre o mistério do mal. Ele escreveu um tratado sobre esta questão 2 . Ele publicou vários artigos e pregou diversos retiros sobre esta problemática. Nesta formação quaresmal, mencionaremos várias citações deste grande teólogo, baseadas na teologia de Santo Tomás de Aquino, mas com uma atualidade inspirada pelo Espírito para o nosso tempo. Com sua ajuda, seremos iluminados em nossos pensamentos e nossas posições em relação a este mistério que tantas vezes nos confunde. Charles Journet inspirou nosso título quando escreveu:

“‘Devemos tentar ir na direção de Deus para compreender o mal através de seu olhar, desta visão profunda que os teólogos chamam de olhar de sabedoria. Então poderíamos ir até fundo das coisas (...)’ com uma ‘fé iluminada pelo dom da sabedoria’, que é ‘a única luz que permite ao espírito descer às profundezas do mal sem sucumbir’.” 3

Podemos então compreender facilmente que qualquer olhar para o mal e qualquer combate espiritual que dele resulte, não pode ser, portanto, discernido e interpretado fora do âmbito do Espírito do Senhor. É, então, a partir da escuta, da orientação e da inspiração do Espírito de Deus que poderemos avançar neste caminho. Três dos evangelistas (Mateus, Marcos e Lucas) relatam a passagem de Jesus no deserto para ser tentado pelo diabo. Ele foi precisamente “impelido” pelo Espírito: “levado pelo Espírito” (cf. Mt 4, 1), “impelido pelo Espírito” (Mc 1,12) e “conduzido pelo Espírito” (Lc 4, 1).

Isto sublinha o quanto devemos ser guiados pelo Espírito Santo, pois, como Charles Journet evidencia:
“Não é tanto o homem que coloca a Deus a questão sobre o mal, à maneira de um clamor que se eleva ao céu, mas é o próprio Deus que dirige ao homem a questão do mal” 4 .

O mal: uma questão que o próprio Deus nos coloca

Para Charles Journet, trata-se de “iluminar um mistério através de um mistério”, porque “a lei do conhecimento de Deus aprofunda a lei do conhecimento do mal uns dos outros no mesmo movimento” 5

É evidente que não se pode colocar no mesmo nível de valores – o bem e o mal – sob pena de cair numa posição dualista, herética e maniqueísta. Mas é certamente através do conhecimento de Deus e à luz do Espírito que o mistério do mal é iluminado.

Neste sentido, a questão do mal é, portanto, dirigida por Deus a cada um de nós, em várias ocasiões de nossa vida. Esta questão é apresentada à humanidade e se põe a cada um de nós pessoalmente. Deus não nos interroga como um juiz ou um policial acusando:

“Ele nos pede para responder sem perder a fé nem o amor, mas, ao contrário, para tirar proveito desta questão, deste escândalo, para aumentar nossa fé e nosso amor.” 6

Em seu tratado sobre o mal 7 (acima citado), Charles Journet distingue três formas do mal, distinções que podem ajudar nossa compreensão sob o olhar de Deus:

a) O mal da natureza (o sofrimento do animal morto por outro animal que faz dele seu alimento...), este mal é permitido, porque está inseparavelmente conectado com o bem que é tolerado por Deus: ‘ele é desejado indiretamente e por acidente’.

b) O mal da punição (a punição resultante do pecado, as doenças humanas, as enfermidades, a velhice, a morte...), este mal também é permitido por Deus, embora não desejado em si mesmo, mas querido igualmente de maneira indireta ‘na medida em que visa um bem ao qual este mal está ligado em virtude da justiça divina’

c) O mal da culpa (o pecado) não é desejado por Deus: não pode haver dúvida de que Deus o quer, mesmo acidental ou indiretamente. Pois Deus é ‘sem ideia do mal’. Este mal do pecado é permitido como uma revolta, como uma ofensa ‘que Deus não pode de forma alguma querer, e à qual Ele não poderia aquiescer nem consentir a não ser negando-se a si mesmo’

Assim, quando dizemos – certamente com demasiada facilidade – que o mal do pecado “é permitido” por Deus, Charles Journet especifica que “isto não pode significar que seria aceito, consentido, tolerado, em suma, desejado indiretamente porque seria o contrário de um bem querido por Deus”. Pois este “mal da culpa”, dentre as várias formas do mal, “do ponto de vista de Deus”, é o da recusa do amor oferecido por Deus, que se apresenta como o mal mais “inaceitável” para Deus, a forma mais radical do mal 8 .

Para Charles Journet, Deus não quer de forma alguma (nullo modo) o mal da culpa para suas criaturas. Quando se admite que “Deus permite a culpa”, essa afirmação deve ser entendida como o amor de Deus para com Sua criatura para além da resistência desta última à vontade divina. Deus permite e conhece o possível fracasso humano, devido à sua natureza defeituosa, mas Ele não é, de forma alguma, a causa disso.

Se, portanto, Deus não tem ideia do mal, Ele nada tem a ver com o mal, mas conhece e ama a pessoa do pecador. Como Gilles Emery o traduz:

“Em outras palavras, Deus vê o pecado, por Sua ciência da visão, na vontade do homem que recusa a graça, e o vê no instante em que esta vontade recusa o influxo divino do amor.

Deus permite o pecado e então aproveita a oportunidade do pecado para obter um bem maior, a encarnação redentora do Filho de Deus.” 9

Podemos resumir com esta fórmula que afasta qualquer ideia de permissividade do pecado por parte de Deus: “Deus tem toda a iniciativa na ordem do bem, a criatura tem toda a iniciativa na ordem do mal” 10.

Ou ainda: “Na linha do bem, toda a iniciativa vem de Deus, o homem toma sozinho a iniciativa do pecado: o pecado ‘é feito sem Deus’” 11.

Charles Journet escreve:
“‘O mal só pode ser conhecido no instante em que fere a existência’ e que a ciência da visão a alcança eternamente, em sua presencialidade, neste mesmo instante em que ocorre.” 12

E ainda: “Deus vê o pecado, do qual não é a causa, na vontade do homem que reduz a nada (‘nulo’) o impulso divino ao bem: Ele conhece o pecado ‘na vontade livremente anulada da criatura’.” 13

Charles Journet, baseado em Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, dá uma resposta precisa: “o mal é permitido para um bem maior” 14.

Tudo isso demonstrado, como poderíamos nos deixar levar por reações de “revolta contra Deus por causa do mal presente no mundo”? No coração deste mal não estaria justamente o próprio Deus? Deus “sofrendo”, como vítima ou como aquele que é acusado injustamente?

Deus “ferido” pelo mal e pelo pecado

Deus é “passível”? Ou seja, Ele pode mudar, sofrer alguma falta e variação? Ele pode ser afetado de uma forma ou de outra pelo agir do homem? É claro que Deus não está ferido em Si mesmo, Ele não conhece falta, pois Ele é impassível. Charles Journet diz: “O mal não pode atingir o bem infinito” 15. No entanto, não pode existir Nele uma “impassibilidade indiferente”.

Santo Ambrósio e depois Santo Agostinho professaram a resposta da impassibilidade absoluta da natureza divina. E no Concílio de Calcedônia, em 451, foi confirmada esta impassibilidade e imutabilidade divina, definindo-se o dogma da Unicidade da Pessoa de Cristo em duas naturezas. Como sublinha São João Paulo II: “A pessoa é unicamente a do Verbo eterno, o Filho do Pai. As duas naturezas, sem qualquer confusão mas também sem possível separação, são a divina e a humana” 16

Mas ainda se pode perguntar: qual o grau de dor que Deus pode “sofrer” sem diminuir Sua essência? Foi em Sua natureza humana, não em Sua natureza divina, que Cristo sofreu na Cruz. É de fato a pessoa do Verbo que sofreu por nós na Cruz, mas enquanto Verbo, Ele permaneceu impassível, Ele aceitou.

Isto não significa, entretanto, que a Pessoa do Verbo não tenha sido “afetada” pelos sofrimentos de sua condição humana na terra. O próprio São Leão Magno, que contribuiu para o Concílio de Calcedônia, afirma sutilmente:

“O que a carne do Verbo sofreu não foi, portanto, o sofrimento do Verbo, mas da carne; suas injúrias e suplícios, porém, refluíram de volta ao Verbo impassível, para que se pudesse dizer com razão que foi a Ele que foi infligido o que Ele permitiu em Seu corpo, segundo a palavra do apóstolo: ‘Se O tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória’ (cf. 1 Cor 2, 8).” 17

Ao encarnar-se no seio da Virgem Maria, o Filho de Deus tornou-se mortal, permanecendo, contudo, imortal. Tornou-se passível, permanecendo, contudo, impassível. Tornou-se frágil, permanecendo, contudo, Todo-Poderoso. Tornou-se homem, permanecendo Deus.

Mas permanecer impassível, não significa sobretudo que Deus é “indiferente” ao mal e ao pecado, como se ambos não O tocassem nem o concernissem. Pelo contrário, pode-se dizer que onde o mal e o pecado fazem sofrer a Sua criatura, Deus está ali sofrendo como aquele que “paga o preço” e, portanto, como verdadeira vítima.

O profeta Jeremias escreve em nome do Senhor, o Deus de Israel: “É por isso que minhas entranhas se comovem por ele, que por ele transborda minha ternura” (Jr 31, 20).

Jesus não deu nenhuma explicação sobre o sofrimento, nem o fez desaparecer, mas encheu-o com a Sua presença, ou seja, assumiu-o e abraçou-o nas suas profundezas. Deus quis viver o sofrimento da natureza humana entrando na condição mortal.

“Então Jesus disse ao discípulo:[...] ‘Ou pensas tu que eu não poderia apelar para o meu Pai, para que Ele pusesse à minha disposição, agora mesmo, mais de doze legiões de anjos?’.” (Mt 26, 52-53)

E a propósito de Cristo, o Apóstolo Paulo descreve esta sublime troca declarando: “Aquele que não conhecera o pecado, Deus fez pecado por causa de nós, afim de que, por Ele nos tornemos justiça de Deus” (2Cor 5, 21).

Alguns teólogos falaram do “sofrimento de Deus”, o que não é isento de problemas do ponto de vista teológico (porque o risco está entre a tentação do antropomorfismo – Deus sofre da mesma forma que as criaturas – e a compreensão da imutabilidade divina). Charles Journet prefere falar do “quase sofrimento” de Deus, explicando ainda o que nosso pecado “provoca”:

“O pecado priva a vontade divina de algo que ela realmente queria (...). Se eu pecar, algo que Deus quis e amou, não se realizará eternamente. Isto é por minha própria iniciativa. [...] Deus, absolutamente invulnerável em si mesmo, é inexprimivelmente vulnerável no amor com que nos carrega e que é o campo de suas misericórdias.” 18

O mistério do sofrimento e da misericórdia

Como vivenciamos durante os dois anos de pandemia, o sofrimento pode ser um enorme desafio pessoal em vista de uma nova maturidade espiritual. De fato, para aqueles e aquelas que passam por isso, o sofrimento é capaz, através da graça divina, de nos transformar e santificar, tornando-nos mais humanos e mais divinos. Esta é novamente a experiência vivida e relatada por Paulo:

“Por isto, eu me comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte.” (2Cor 12, 10)

O fato de amar o sofrimento pode revelar uma doença. Aumentar o sofrimento não é justo nem saudável. Por outro lado, não é bom que o sofrimento seja vivido na negação, revolta ou no fechamento em si mesmo. Esta inclinação para fechar-se em si mesmo reforça inevitavelmente a armadura do egoísmo, assim como os reflexos de autodefesa e justificação. Podemos compreender esta surpreendente verdade: um dos obstáculos à misericórdia é a autojustificação, pois ela constitui um endurecimento oposto à confiança e ao abandono que implica o acolhimento da misericórdia.

O sofrimento pode se tornar uma escola de vida, quando contribui para abrir a alma a uma vida teológica transformadora. Quantos testemunhos atestam este fato: “Tive que passar por esta dolorosa provação para mudar minha visão dos outros e para mudar meu comportamento”.

Em uma de suas correspondências, um teólogo do século XVII, Fénelon, escreveu: “O sofrimento é um purgatório de misericórdia neste mundo” 19.

Assim, há duas realidades para se trabalhar:
A necessidade de aceitar diante de Deus que somos pessoas humanas limitadas, mortais, vulneráveis, feridas e pecadoras. E aceitar isto para aqueles que nos rodeiam. Este é o importante ponto de partida, pois sem esta aceitação, a mudança interior é como que impedida, aprisionada ou, pelo menos, atrasada.

A segunda etapa, sendo igualmente importante, diz respeito às nossas reações aos infortúnios que nos assolam. Não podemos deixar sem limite e sem trabalho nossas próprias reações às feridas, sofrimentos e várias contrariedades que nos acontecem. Não devemos permanecer nem invulneráveis (sob pena de rigidez) nem vitimizados (sob dor de desespero).

“A Igreja divide o bem e o mal em nós. Ela retém o bem e deixa o mal. Suas fronteiras passam por nossos corações. O mal é sobretudo o pecado mortal, que nos faz perder a caridade; e também o pecado venial, que impede o brilho da caridade em nós.” 20

Uma palavra sobre as tentações

Quanto à ordem das tentações, é importante verificar o discernimento espiritual com o seu acompanhador. Ele deve discernir isto em referência às Escrituras. Por exemplo:

“Ninguém, ao ser tentado, deve dizer: ‘É Deus que me está tentando’, pois Deus não pode ser tentado pelo mal e a ninguém tenta. Antes, cada qual é tentado pela própria concupiscência, que o arrasta e seduz. Em seguida a concupiscência, tendo concebido, dá à luz o pecado, e o pecado, atingindo a maturidade, gera a morte. Meus amados irmãos, não vos enganeis: todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto e desce do Pai das luzes, no qual não há mudança nem sombra de variação. Por vontade própria Ele nos gerou por uma palavra de verdade, a fim de sermos como que as primícias dentre as Suas criaturas.” (Tg 1, 13-18)

Reconheçamos humildemente as proposições do demônio quando elas se apresentarem. Alguns cristãos às vezes têm dificuldade de fazer esta distinção e chegam a pensar que uma ideia pode ser inspirada (por Deus) quando, na verdade, trata-se de uma tentação (demoníaca). O que é da ordem da tentação pode ser reconhecido por vários critérios, entre eles: a tentação demoníaca sempre afasta a pessoa de Deus, de seus irmãos na fé e da realidade.

A vitória da misericórdia

O mal mais terrível e o pecado que mais fere a Deus não podem ser compreendidos “até que tenhamos vislumbrado a seriedade de Seu amor por nós”.
Charles Journet descreve aqui a misericórdia como “a virtude que vem do alto”:

“Não estamos falando do ‘complexo de culpa’ com que os psiquiatras lidam; estamos falando do verdadeiro pecado, desta catástrofe do homem interior que se devastou rejeitando o amor, deste ‘nada do qual eu mesmo sou a causa e que destrói meu ser e faz com que meu Deus morra’ 21. Diante do qual todos os remédios humanos são um escárnio. Ele nos tira, não da provação, mas do desespero. Trata-se de preencher, não nossa mera capacidade natural de felicidade humana, mas uma capacidade muito mais misteriosa de nos tornarmos membros do Corpo Místico de Cristo e morada do Espírito Santo, Ele nos tira da lama e nos faz filhos de Deus: ‘Outrora fostes das trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como filhos da luz’ (Ef 5, 8).” 22

“A vingança de Deus é sua misericórdia”, como constatamos na dramática história que Jesus conta sobre os vinhateiros homicidas (Mt 21, 33-43). Deus responde às nossas traições com Sua misericórdia. “A vingança de Deus é Sua misericórdia”: ao enviar Seu Filho, não mais um servo, mas o Filho Único, Jesus.

Charles Journet descreve a bela solicitude do pastor sofredor quando ele vê aqueles e aquelas que se afastaram do rebanho:

“A Igreja continua a viver até mesmo em seus filhos que não estão mais na graça. Ela luta neles contra o mal que os destrói; ela se esforça para mantê-los em seu seio, para recapturá-los constantemente no ritmo de seu amor. Ela os protege como um tesouro que só pode ser descartado sob coação. Não é que ela deseje se sobrecarregar com um peso morto. Mas ela espera que, com a força da paciência, da complacência e do perdão, o pecador que não se desprendeu completamente dela se converterá um dia para viver em plenitude; que o ramo adormecido, graças à pouca seiva que permanece nele, não seja cortado ou lançado no fogo eterno, que tenha tempo de florescer novamente. 23

O Papa Francisco, por sua vez, se refere a esta “tristeza pastoral”:
“Muitas vezes sucede que nos sentimos cansados, desiludidos, tristes, sentimos o peso dos nossos pecados, pensamos que não conseguimos? Não nos fechemos em nós mesmos, não percamos a confiança, não nos demos jamais por vencidos: não há situações que Deus não possa mudar; não há pecado que não possa perdoar, se nos abrirmos a Ele.” 24

Se o mistério do mal e do pecado desconstrói, desintegra e desune, produzindo todo tipo de cismas e heresias, fragmentações e desconstruções, podemos dizer que a misericórdia é a graça do bem que reconstrói, integra e une. Durante sua primeira viagem missionária, os Apóstolos Paulo e Barnabé encorajaram e fortaleceram os cristãos na Ásia Menor lembrando-os:

“Confirmavam o coração dos discípulos, exortando-os a permanecerem na fé e dizendo-lhes: ‘É preciso passar por muitas tribulações para entrarmos no Reino de Deus’.” (At 14, 22)

Que o Senhor, ao entrarmos nesta nova Semana Santa, permita que cada um de nós passe da morte para a Vida, da indiferença para a Fé, do pecado para o serviço de Deus, do desânimo para a perseverança, da autojustificação para a Misericórdia.

1O título dado a este artigo é inspirado netas palavras de Charles Journet: “Deve-se tentar ir até Deus para compreender o mal através do Seu olhar” (cf. Citação de Journet no artigo da Revue Nova et Vetera “Redenção, o drama do amor de Deus”, NV 48/1 (1973). E do artigo de Gille Emery (OP): “Charles Journet – uma testemunha do século XX”, publicado em 2003 na Universidade de Friburgo, em https://folia.unifr.ch/unifr/documents/308227).

Referências:

2Cf. Cardeal Charles Journet, O Mal, Ensaio Teologico, Ed DDB, 1962.

3Cardeal Charles Journet, citado por Gilles Emery em: A questão do mal e o mistério de Deus em Charles Journet, p. 2-3. 4 Ibidem, p. 3.

5Cf. Ibidem, p. 2. 6Cf. Ibidem, nota de rodapé p. 3 7Cf. Ibidem, p. 4.

8Cf. Cardeal Charles Journet, citado por Gilles Emery em: A questão do mal e o mistério de Deus em Charles Journet, p. 4.

9 Ibidem, p. 6-7 e p.12. 10 Ibidem, nota de rodapé p. 7. 11 Ibidem p. 8. 12 Ibidem, p. 7.

13Cf. Cardeal Charles Journet, citado por Gilles Emery em: A questão do mal e o mistério de Deus em Charles Journet, p. 7. 14 Ibidem, p. 11. 15Cardeal Charles Journet, Le Traité de L’Église (Tratado da Igreja), cap. II, 2.

16 São João Paulo II, Novo Millennio Inente, n. 21. 17 cf. S. Leão Magno, Sermão XVII sobre a Paixão.

18Cardeal Charles Journet, citado por Gilles Emery em: A questão do mal e o mistério de Deus em Charles Journet, p. 14 e 18.

19François Fénelon “Carta ao Marquês de Blainville”, Correspondência de Fénelon citado por Alexandre Freire Duarte em Por que Deus nos deixa sofrer? Sofrimento e espiritualidade cristã 2.

20Cardeal Charles Journet, Le Traité de L’Église (Tratado da Igreja), cap. VII, I, 1.

21 Jacques Maritain, Breve tratado sobre a existência e o existente. 22 Cardeal Charles Journet, Le Traité de L’Église (Tratado da Igreja), cap. X, 2.

23 Ibidem, cap. VII, I, 1. 24Papa Francisco, Homilia para a Vigília Pascal, 30 de março de 2013