Liberdade pessoal e engajamento vocacional

 

Diácono Georges Bonneval

Este mês de novembro é, como cada ano, marcado pela Festa de Todos os Santos, pela Solenidade de Cristo Rei do Universo e pelo primeiro domingo do Advento. Mas é também, para a nossa Comunidade Sementes do Verbo, o mês do nosso Retiro Comunitário anual, com as celebrações dos engajamentos comunitários e os votos de vida consagrada, na presença do nosso Bispo-Garante.

Pertencer a uma família espiritual, como cristãos engajados, quer seja num movimento eclesial, ou numa comunidade de vida ou de aliança, é geralmente visto como uma escolha positiva. Às vezes, podemos compreender os medos das pessoas que não conhecem essa forma de vida e para quem, uma vida comunitária, é sinônimo de “falta de liberdade”, ou mesmo de “prisão”.

No entanto, você não entra na vida comunitária como entra em um clube cultural ou esportivo. Isso não pode ser inventado, fabricado ou improvisado, como poderia ser decidido numa atividade cultural ou profissional.

Por outro lado, nunca esqueçamos que, desde o primeiro Pentecostes, o Senhor nunca cessou de renovar a graça do dom da vida fraterna e comunitária, quando a Igreja e o mundo estão particularmente necessitados dela.

O nascimento das Novas Comunidades, considerado como uma estação de Primavera nesta grande “Corrente de Graça” das últimas décadas, deve certamente ser considerado com gratidão um sinal de misericórdia divina para a vida cristã normal de milhares de pessoas nestes tempos difíceis.

O Cardeal J. Ratzinger, no Ano dedicado ao Espírito Santo, deu uma conferência histórica em Roma, sobre os Movimentos Eclesiais e Comunidades Novas, dando um olhar sobre a história da Igreja, todos as renovações espirituais que foram fundadores de novas formas de vida comunitária:

“S. Basílio não tinha a intenção de criar sua própria instituição à parte da igreja comum. A primeira e única Regra que ele escreveu pessoalmente não era para ser a Regra de uma ordem, mas pelo contrário ‘a Regra da Igreja do cristão convicto’. Foi assim também no início de quase todos os movimentos do nosso século... Não estamos procurando uma comunidade em particular, estamos procurando a vida cristã integral, a Igreja que obedece ao Evangelho e o vive.” (Cardeal Ratzinger, Conferência sobre Movimentos Eclesiais e Novas Comunidades, 1998)

Este chamado a uma forma de vida cristã mais plena e completa, quando realizado, é na maioria das vezes, preparado com antecedência no coração de quem o procura, por meio de certos sinais concretos que são úteis para detectar:

— Toma-se consciência de um bem procurado e desejado. “Jesus voltou-se e, vendo que eles o seguiam, disse-lhes: ‘Que procurais?’ Disseram-lhe: ‘Rabi, que, traduzido, significa Mestre, onde moras?’. Disse-lhes: ‘Vinde e vede’” (Jo 1, 38-39).

— Sta. Teresinha do Menino Jesus escreveu neste sentido: “O Bom Deus sempre me fez desejar o que Ele queria me dar.” (Sta. Teresinha do Menino Jesus, Manuscritos Autobiográficos C, 31.)

— Depois, tomam-se os meios para obter esse bem e para vivê-lo (o candidato assume os primeiros engajamentos).

— Então, a pessoa se torna fiel aos meios tomados (o membro faz os compromissos e votos definitivos).

— Depois, se vive a alegria e o gozo do bem que se desejava (atualizando e renovando seus engajamentos e seus votos).

A liberdade não está no final das quatro etapas, ela está necessariamente presente em cada etapa. “A liberdade é o consentimento ao Alfa e o desdobramento para o Ômega, o homem é criado à imagem de Deus e ‘para’ a imagem de Deus” ( Pe. Luc de Bellescize, Conferência Quaresmal, Paróquia de Sto. Eugênio, Paris, 2017)

Vejamos mais precisamente como a nossa liberdade vocacional é chamada, ao longo de um percurso, a pôr-se em marcha, nesse caminho com Cristo e com nossos irmãos e irmãs de comunidade:

a) O primeiro é certamente o de um “encontro providencial” entre uma determinada comunidade e uma pessoa que está a caminho. Como aconteceu desde o início dos Evangelhos:

É óbvio que a liberdade pessoal deve estar presente e ser vivida por cada pessoa envolvida nesse encontro. Além disso, essa liberdade se manifesta, muitas vezes, de uma forma bem diferente de uma pessoa para outra, dependendo da psicologia de cada um. Alguns dirão mais tarde: “Eu me senti em casa desde o primeiro momento!”, e outros, pelo contrário, dirão: “Eu nunca teria escolhido este lugar, nem estas pessoas!”

Nesta primeira etapa de conhecimento, acontece uma experiência de descoberta mútua. Os componentes humanos, a forma prática da vida, assim como os elementos espirituais e doutrinais da comunidade, alcançam objetivamente a pessoa em sua busca e sua sede de os pôr em prática, com os outros. Estes componentes fazem parte do chamado “carisma objetivo” de uma comunidade. O recém-chegado pode não ter escolhido as pessoas que fazem parte desse grupo, mas os valores que essas pessoas vivem e expressam diariamente, estão exata e profundamente ligados aos seus desejos e aspirações.

Esse reconhecimento interior, esse clique, essa evidência... não pode acontecer, nem por pressão externa, nem por qualquer tipo de “forcing”, muito menos por manipulação psicológica, nem pode ser provocada por uma indústria totalmente humana. Por exemplo, consideramos a natureza da nossa comunidade como uma “escola” permanente, uma “família eclesial” e um “laboratório de comunhão”.

b) Para que o elemento de inspiração interior apareça, é preciso reconhecer nele, de ambos os lados, a obra da “graça”

Esta tomada de consciência e reconhecimento não são (apenas) de natureza sensível e afetiva. Como vimos acima, pode até acontecer que algumas pessoas vivam um fenômeno de recusa à priori.

Mas um dia, acontece uma experiência espiritual da ordem da graça de uma confirmação interior: “É isso!” ou, como Jacó exclamou na sua passagem em Betel: “O Senhor está neste lugar e eu não o sabia!” (Gn 28, 16)

c) Trata-se de uma experiência da ordem da graça, esta deve ser verificada e submetida a um certo discernimento, pois ninguém pode decidir sozinho perante todas as partes envolvidas. No caso de um caminho de orientação comunitária, a pessoa que busca, deve fazer essa verificação com um responsável comunitário. É então que pode começar um caminho de confiança mútua, onde cada um aceita assumir: a pessoa que busca, por um lado, e a comunidade, por outro.

A pedagogia de Deus se manifesta de maneira luminosa na vida de Edith Stein (Neste percurso sobre o chamado vocacional, eu me inspirei na conferência sobre Edith Stein, de Christophe Betschart: A força de Deus no homem, no Colégio dos Bernardinos, Paris, no dia 5 de dezembro de 2009).

No início de sua vocação, Edith Stein, que se tornou, na sua vida religiosa, Ir. Teresa Benedita da Cruz, tinha a tendência de acreditar que era capaz de realizar tudo com suas próprias forças, como ela mesma explica, referindo-se a uma máxima de sua própria mãe: “‘ O que se quer, pode-se’. [...] Eu tinha muitas vezes me gabado [ela diz] que meu crânio era mais duro que as paredes mais grossas, e agora [durante seu trabalho de tese] eu estava machucando minha testa batendo nela, e a parede estava inexoravelmente se recusando ceder” (Christophe Betschart: A força de Deus no homem, no Colégio dos Bernardinos, Paris, no dia 5 de dezembro de 2009).

Através de suas leituras de Santo Tomás de Aquino e Sta. Teresa d’Ávila, ela fez sua a teologia sobre a graça:

A graça é o Espírito de Deus que vem, o Amor divino que desce sobre nós. Na fé, a graça que nos é dada objetivamente é subjetivamente assumida. [...] A fé não pode florescer se a graça não for livremente apreendida. A graça e a liberdade são, portanto, constitutivas da fé.” (Edith Stein, A Pessoa, 1932.)

d) Depois destes “primeiros componentes” discernidos do chamado da graça, será necessário viver um caminho concreto de vida comum. Esta é a etapa da encarnação do chamado.

Esta etapa inaugura o caminho da vida de um discípulo de Cristo, que aceita o chamado do seu Mestre: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me. Pois aquele que quiser salvar sua vida, a perderá; mas, o que perder sua vida por causa de mim e do Evangelho, a salvará” (Mc 8, 34-35). Trata-se de um compromisso de um ano (que pode ser renovado).

É o pôr em prática este chamado de Cristo, que se encarna na espiritualidade e na Regra de Vida do carisma da comunidade. É a etapa da renúncia livre e voluntária da própria vida, dos próprios projetos individuais, para se tornar disponível à ação de Deus, em comunhão com irmãos e irmãs, que ninguém escolheu, senão Cristo: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui Eu que vos escolhi e vos designei para irdes e produzirdes fruto, e para que o vosso fruto permaneça.” (Jo 15, 16)

A graça de Deus não suprime a nossa natureza, mas a eleva e a aperfeiçoa. Não se trata de conceber uma oposição entre a vida natural e a vida sobrenatural, mas de buscar conhecer o que vem da “carne” e o que vem do “espírito”. A força divina da graça só se torna nossa quando desposa a nossa natureza acolhida e aceita: “A Palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes, penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções do coração.” (Hb 4, 12)

Trata-se de passar ao conhecimento de si – sabendo reconhecer a própria força natural autossuficiente, capaz de “salvar-se a si mesmo” – para poder acolher e experimentar, às vezes com aquebrantamento, a Palavra do Evangelho: “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5)

Esta etapa e seu percurso só são possíveis com a graça que permitiu o início do caminho e que é igualmente necessária dentro desta etapa de discipulado.

“Da Cabeça Divina (Cristo), flui constantemente para os membros a força, ‘que sempre precede, acompanha e segue suas [boas] obras’: como precedente, inspira o bem, como acompanhante, ajuda a realizá-lo, como seguidora é a multiplicação da graça, que deve ser considerada como o salário do bom trabalho.” (Christophe Betschart: A força de Deus no homem, no Colégio dos Bernardinos, Paris, no dia 5 de dezembro de 2009)

e) Ao final desta etapa de “discipulado”, começa outra parte do caminho, que consiste em aprofundar o chamado recebido, que nossa comunidade chama a etapa de “filho e filha”. O engajamento temporário é por 3 anos.

“Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz; mas vos chamo amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer.” (Jo 15, 15)

Esta relação de profunda “amizade” com Cristo, assim como com a comunidade, caracteriza-se por uma busca de maior profundidade vocacional. Não se trata apenas de viver os elementos e componentes da Regra comum em conformidade externa, mas de envolver nela o “fundo do coração”. É o trabalho de união mais profunda com Deus, mas também de conhecer a si mesmo e aos outros, num espírito de amizade filial. Jesus define a amizade através da comunhão de intenções: “Vós sois meus amigos se praticardes o que vos mando” (Jo 15, 14). Não há segredos entre amigos: Cristo confia-nos tudo o que ouve do Pai; dá-nos a Sua plena confiança e, com ela, comunica-nos o conhecimento da Sua vontade. Vontade que, agora, procuramos receber juntos.

O Cardeal Joseph Ratzinger, pouco antes de se tornar Papa Bento XVI, definiu bem esta união de vontades: “Jesus sofreu todo o drama da nossa autonomia e precisamente levando a nossa vontade às mãos de Deus, oferece-nos a liberdade verdadeira:Não como eu quero, mas segundo a Tua vontade’ (Mt 21, 39). Nesta comunhão da vontade realiza-se a nossa redenção: ser amigos de Jesus, tornar-nos amigos de Deus. Quanto mais amamos Jesus, quanto mais O conhecemos, tanto mais cresce a nossa verdadeira liberdade, cresce a alegria de ser remidos” (Cardeal Ratzinger, Homilia na Missa para a eleição do novo Papa, 18 de abril de 2005)

É também a etapa formativa que faz a diferença e a passagem da vida natural para a vida sobrenatural. A graça e a liberdade, juntas, são necessárias para tornar possível esta nova etapa da fé. Não se trata, nesta etapa, de negar a nossa natureza humana, pelo contrário, ela deve ser conhecida e acolhida (como vimos acima), mas é uma questão de entrar na experiência de uma pedagogia do bom combate espiritual. O membro que vive esse compromisso deve aprender a diferenciar entre sua capacidade natural e a força de Deus, os dois colocados em harmonia. Caso contrário, quando essa capacidade natural é vivida como uma exaltação da natureza, uma “autossuficiência”, ela corre o risco de ser mal utilizada para o serviço de Deus e para a vocação. Foi o que aconteceu com o Apóstolo Pedro, que teve que aceitar esta dolorosa afirmação da parte do Senhor: “Afasta-te de mim, Satanás! Tu me serves de pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens!” (Mt 16, 23)

Sua natureza humana, certamente generosa e devota, era uma barreira para a obra de Deus. É importante que saibamos, o mais rápido possível, fazer a diferença entre “fazer a obra de Deus” e “fazer obras para Deus!”.

Neste sentido, Edith Stein escreveu, em 1918, em uma de suas cartas: “Provavelmente é necessário sentir muito fortemente a sua própria impotência para ser curado da confiança ingênua e sem limites de vontade e poder, como eu o possuía outrora.” (Edith Stein, Correspondência, a Roman Ingarden, 12 de fevereiro de 1918.)

f) A próxima etapa do caminho vocacional é a do “Doados”, que nos permite pronunciar o engajamento definitivo.

É uma etapa onde a liberdade pessoal pode vislumbrar um compromisso de longo prazo, em vista de uma vocação definitiva. A pessoa experimentou sua própria fraqueza e não está mais escandalizada com ela. Da mesma forma que não está mais escandalizada pelos limites e fraquezas que viu em seus irmãos e irmãs em comunidade. Ela pode ver que não vive mais em oposição, nem com a força de Deus, nem em competição e oposição com as forças naturais de seus irmãos e irmãs em comunidade.

Tem a ver com a gestão de sua força natural, que deve poder ser confirmada e consagrada, pouco a pouco, pela graça do Senhor, em vista de seu próprio carisma pessoal e em vista de uma missão que lhe foi confiada. É útil ressaltar que esse percurso, com suas diferentes etapas e progressos, como as relatamos, pode ser vivido em formas de atualização e diferentes releituras ao longo de uma vida vocacional.

“Peco quanto à verdade se guardo para mim o que de fato tenho que dar aos outros...” (0 Pe. Pierre Ceyrac, missionário jesuíta francês na Índia, 1914-2012)

“O que não é doado, é perdido.” (Ibidem)

Tornamo-nos homens, mulheres de Deus, quando aceitamos dar essa reviravolta na nossa liberdade de forma definitiva.

Uma vida em comunidade, para aprender a morrer!

Sta. Teresinha de Lisieux, em agonia, perguntou humildemente à sua Prioresa: “Mãe, estou agonizando? Como vou fazer para morrer? Nunca vou saber morrer” (Sta. Teresinha do Menino Jesus, Últimas Palavras, 58, coletadas por Ir. Maria da Trindade, 29 de setembro de 1897.)

Edith Stein, por sua vez, tomou consciência de que era um instrumento nas mãos do Senhor, para colaborar na obra divina, oferecendo sua vida em intercessão pelo seu povo, o povo judeu.

Ela escreve a Ursuline Petra Brüning, aludindo a um tempo de oração passado no Carmelo, em Colônia: tempo de oração passado no Carmelo, em Colônia: “Entendi sob a cruz o destino do Povo de Deus que já estava sendo anunciado [na sua entrada no Carmelo]. Pensei que aqueles que entendessem que se tratava da Cruz de Cristo, deveriam tomá-la sobre si em nome de todos” (Edith Stein, Correspondência, de 9 de dezembro de 1938.)

O sentido profundo da força na vida de Sta. Teresa Benedita pode ser compreendido ao ver, em sua vocação, a relação entre o mistério de Israel e o mistério da Cruz. Ela recebeu de Cristo a força para carregar sua cruz, em favor do povo escolhido. Essa forte perspectiva vocacional anima os últimos anos da vida carmelita, tanto no sentido de seus sofrimentos quanto de suas alegrias.

“Sou obrigada a pensar sempre de novo na Rainha Ester, que foi separada do seu povo para ser a favor do povo perante o rei. Eu sou uma Ester, muito pobre e indefesa; mas o Rei, que me escolheu, é infinitamente grande e misericordioso. Quão grande é esse reconforto.” (Edith Stein, Correspondência, de 31 de outubro de 1938 a Petra Brüning.)

O repouso em Deus: o lugar da nossa verdadeira liberdade pessoal

Vários anos antes, Edith Stein havia descoberto a graça particular do “repouso do abandono em Deus”. Essa experiência espiritual não poderia ser chamada de “a experiência da liberdade pessoal em Deus”?

“Existe um estado de repouso em Deus, de total suspensão de toda atividade do espírito, no qual não se podem conceber planos, nem tomar decisões, nem fazer nada mas onde, tendo-se colocado todo o futuro na vontade divina nos abandonamos ao nosso destino. Experimentei um pouco esse estado, a seguir a uma experiência que ultrapassando as minhas próprias forças, consumiu totalmente as minhas energias espirituais e me subtraiu toda a possibilidade de ação. Comparado com a paragem da atividade por falta de força vital, o repouso em Deus é qualquer coisa de novo e de irredutível. Primeiro é o silêncio da morte, depois nasce um sentimento íntimo de segurança, de libertação de tudo o que é preocupação e responsabilidade em relação ao agir. E enquanto eu me abandono a este sentimento, eis que começa pouco a pouco a encherme uma vida nova que começa pouco a pouco a preencher-me, sem nenhuma pressão sobre a minha vontade e que me vai empurrar para novas realizações. Este afluxo vital parece emanar de uma Atividade e de uma Força que não são minhas e que, sem me violentar, torna-se ativo em mim. A única primícia necessária para tal renascimento espiritual parece ser essa capacidade passiva de acolhimento que reside no fundo da estrutura da pessoa.” (Edith Stein, Causalidade Psíquica, 1918.)