Quem irá acompanhá-los?

Por Irmã Maria Sarah

Uma das urgências da Igreja hoje é formar acompanhadores para jovens, casais, famílias, padres e consagrados... pois uma multidão imensa clama por socorro, andando à deriva, sem referências claras, nem luzes fiáveis na escuridão deste mundo. Por falta de acompanhadores bem formados, podemos muito facilmente perder o sentido do nosso próprio mistério e vocação, e num instante de nevoeiro destruir anos de árdua construção humana e espiritual! E não nos enganemos, pois no que toca a vida espiritual, todos nós precisamos de um mestre, de alguém que nos ensine e nos forme, que nos guie e nos proteja do nosso eu superficial e instável, tantas vezes cego e surdo, face ao chamado do Senhor em nossas vidas.

Acompanhamento Espiritual na Comunidade SdV

Acompanhamento Espiritual na Comunidade SdV

O coração de Jesus foi ferido de compaixão ao ver os homens que caminhavam como ovelhas sem pastor (cf. Mt 9,36). Ele chorou sobre Jerusalém, tentando reunir os seus eleitos tão dispersos... (cf. Lc 19,41) E um dia, o Senhor pousou também o Seu olhar de Amor sobre cada um de nós e encheu-se de compaixão pela nossa condição, ao ver-nos caminhando errantes, à deriva, existencialmente órfãos neste mundo. Ele é o Pai, o Emanuel, o Deus conosco, Aquele que quer caminhar e insiste em permanecer entre nós, Ele é o Espírito de Amor, Verdade e Vida que não desiste de nos conduzir à plenitude do nosso mistério e à alta medida de fecundidade espiritual, desejada pelo Pai, para o nosso ministério.

“A medida da vossa fecundidade é a medida da vossa união com o Pai!” nos repete tantas vezes o nosso fundador. Mas como me unir a Deus se não sou guiada, encorajada, protegida num mundo onde fervilham propostas de múltiplos caminhos e opções, e onde é tão fácil se perder nas ciladas dos combates espirituais e nos meandros da minha humanidade inconstante, ferida e imatura? Por isso mesmo, ter um acompanhador não é um luxo nem um privilégio para uma elite, mas é uma verdadeira necessidade. Todos nós precisamos de um acompanhador espiritual! Caminhar sem um acompanhador é ser como um atleta sem treinador. Podemos ter mil habilidades e aptidões, mas se não nos deixarmos instruir e verificar por um bom treinador, não faremos progressos. Deus quer dar um acompanhador espiritual a todos e a cada um!

Quando cheguei no Brasil, há 22 anos atrás, fui morar na imensa favela da Sta. Irmã Dulce, que foi também visitada pelo Papa João Paulo II: os Alagados, em Salvador da Bahia! Aí, milhares de jovens e famílias viviam em palafitas, imagem nua e crua da insegurança que tantas almas experimentam ao caminharem pelos labirintos dessas pontes tão instáveis e frágeis... “Quem iria ajudá-los?” Passar de uma abadia do século XII, na França, para uma casinha muito pobre, nessa imensa favela, transpassou meu coração e me abriu os olhos para uma realidade interior muito profunda... Todos temos, dentro de nós mesmos, essa construção interior bem frágil e precisamos de ajuda para podermos atravessar para a outra margem... a margem da vida espiritual e da vocação!

Eu contemplava esses milhares de jovens que viviam naquele lugar e ouvia o nosso fundador dizer assim: “Quem irá acompanhá-los?”. Eu tinha apenas 25 anos e me sentia muito incapaz e insegura, mas esse grito não cessava de ecoar dentro de mim: “Quem irá acompanhar esses jovens? Quem dará a sua vida para escutar os seus gritos e suplicar a direção do Espírito Santo para eles? Quem irá acompanhar esses jovens para que não se destruam, mas ao contrário, tenham uma vida em plenitude?”. Diante da aparente indiferença de tantos, face ao silêncio esmagador que reinava por parte daqueles que deveriam ser os “guias espirituais profissionais”... e vendo essa multidão sem pastor, com o meu coração ardendo respondi: “Eu vou!”. Rapidamente, uma lista enorme de jovens acorreu à nossa porta e pedia conselhos, não pedia nem pão nem água... mas pedia para serem acompanhados no emaranhado de suas vidas por vezes tão sofridas. Foram esses jovens que me transpassaram o coração e a alma; obrigaram-me a me deixar cada vez mais acompanhar, para poder ser formada como acompanhadora... Toquei então esse insondável mistério do “Arrasta-me, corramos!” (Ct 1,4). Quanto mais eu me deixar acompanhar e unir ao Senhor tanto mais uma multidão será arrastada, por Ele e para Ele!

Contudo, você pode ainda estar se perguntando: “Mas, por que eu preciso de um acompanhador espiritual?”. A resposta é bem simples: porque precisamos que nossa alma seja salva e precisamos de ajudar outros a se lançarem nesse trampolim divino! Quando uma pessoa se deixa acompanhar, é desvendado o seu mistério de solidão, onde só Deus a conhece, no mais profundo do seu ser, mesmo se a sua existência pode parecer-lhe um absurdo, um mero acidente, totalmente vazio de sentido. Ouvimos então o sussurro da voz do Pai, dentro de nós a indicar-nos quem somos, o que devemos fazer e qual o caminho certo a trilhar. É aí que a pessoa acompanhada será revelada na sua identidade filial e descobrir-se-á verdadeiramente e incondicionalmente amada! Então é possível experimentar que foi criada para ser salva, que é feita para o céu e é chamada a uma enorme fecundidade espiritual!

Mas apresentar um caminho de salvação para uma alma não se faz sem dores de parto! Somos salvos quando uma pessoa, um homem ou uma mulher de Deus, aceita sofrer as dores de nos gerar para a vida no Espírito e dar à luz ao mistério que envolve todos os acontecimentos da nossa história. Será o acompanhador espiritual que travará um verdadeiro combate para guardar o mistério da nossa vida! Nós até podemos acreditar que já alcançamos tudo o que o mundo nos apresenta como meta, que a nossa vida está bem construída, que temos um futuro promissor à nossa frente, que até temos forças para sermos bons cristãos... Contudo, Sta. Teresinha do Menino Jesus nos ilumina ao dizer: “Várias almas estão doentes, muitas são fracas mas todas sofrem! Que ternura deveríamos ter por elas!”¹ .

E para tão árdua missão, como temos que formar uma nova geração de acompanhadores! Sabemos também que quando um homem ou mulher de Deus são enviados pela Igreja, em comunhão com os seus pastores e acompanhadores, para tornarem-se acompanhadores espirituais, eles recebem o dom da autoridade espiritual.

A palavra autoridade deriva do latim auctoritas, que vem por sua vez de auctor, derivado de augere, que significa fazer crescer. Assim, aquele que exerce autoridade, deve lembra-se que seu principal papel é fazer com que os outros cresçam, desenvolvam-se, descubram sua total potencialidade. Daí advém sua autoridade. É por isso que a imagem daquele que tem autoridade é sempre comparada a de um maestro de uma orquestra. Repare que ele, na orquestra, não toca instrumento algum. A sua autoridade se resume em conseguir que cada músico dê o máximo de si para que o concerto seja belíssimo, ou seja, um espetáculo onde cada um completa o dom irrepetível do outro. Todos são únicos e indispensáveis, por mais insignificantes que possam parecer. Para dar à luz essa nova sinfonia, o maestro ensina, ensaia muito, treina incessante e individualmente cada músico e toda a sua orquestra. O belo e o divino se manifesta na harmonia da unidade, geradas pela diversidade na complementaridade. E ninguém pode retirar o seu dom, doando-se menos do que poderia dar-se. É por isso que o maestro mais talentoso é aquele que consegue tirar da sua orquestra sons surpreendentes, de beleza e harmonia, que nos fazem pensar no céu! Dizemos mesmo que aquela orquestra cresce nas mãos daquele maestro.

O interessante desta comparação é lembrar que um maestro não pode ir até o palco, tirar o instrumento de um músico e tocar por ele durante um concerto. Ele tem que fazer com que aquele músico toque bem. Ou consegue isso ou substitui o músico, mas ele, o maestro, não pode fazer o papel do músico. E não há como tirar um músico durante o concerto. Ele pode fazer isso antes, mas não durante. Sem aquele músico, aquela partitura não poderá ser executada e o maestro e o músico sabem disso. A autoridade do maestro é, portanto, bem limitada. Ele tem que fazer aquele músico crescer. Assim tem que haver uma cumplicidade e uma parceria de lealdade entre aquele que tem autoridade e aquele que lhe obedece para poder crescer. Veja que o mesmo ocorre (ou deveria ocorrer) na vida e na empresa. A autoridade de um pai está em fazer seu filho crescer e se desenvolver com valores e princípios elevados, assim como um chefe, diretor, gerente, supervisor, encarregado tem sua autoridade em fazer seus subordinados crescerem em suas atividades e profissões em benefício dos clientes. Essa é a verdadeira autoridade: fazer crescer o outro!

Mas nos dias que correm, a palavra autoridade não é bem compreendida, sugerindo até manipulação e restrição da legítima liberdade de cada um. Fomos tão feridos com atitudes de abuso de poder e autoritarismos de toda espécie, ou então, por uma autoridade adolescêntrica, egoísta e que abandona, que enxergamo-la como uma força que esmaga, oprime e desfigura. Submeter-se a uma autoridade causa em muitos a vertigem de uma absoluta desconfiança. Mas Deus no Seu Amor de Pai, envia-nos seus acompanhadores para exercer sobre nós uma autoridade que nos faça crescer, cada um no seu mistério e ministério; a autoridade segundo Deus é a graça de fazer o outro tornar-se aquilo que é chamado a ser. Nesse sentido, na vida espiritual, podemos distinguir três tipos bem distintos de autoridade. E é importante conhecê-los para compreender o papel que exercem sobre nós.

1º) Uma autoridade de presença: é exercida por alguém que, somente com a sua presença, é capaz de nos guardar no caminho reto, protegendo-nos de forma discreta mas bem eficaz. Ela não precisa falar nada, mas me guarda pelo seu exemplo, amor e intercessão por mim. Faça memória na sua vida de uma mãe, um avô, avó, padrinho ou madrinha, um tio, ou um religioso... que lhe guardou pela sua simples presença amorosa e orante!

2º) Uma autoridade profética: ocorre quando uma pessoa possui um olhar profético sobre nós, ela vê o que seremos e tem a fé para nos fazer chegar ao cumprimento dessa visão de Deus sobre nós. Ela acredita na nossa vocação e nos interpela pelo seu olhar a nos tornarmos quem somos, já nos vendo lá na frente, quando seremos bem mais maduros, santos e fecundos! Quem exerce esse papel em tua vida? Quem dará um grito de alerta se você se desviar e fugir do seu mistério ou da sua vocação? Quem, como um profeta, luta por você?

3º) Uma autoridade pastoral: é aquela exercida por um acompanhador, isso é, aquele que vai atrás do rebanho e protege as ovelhas, aceitando caminhar mesmo em sentido contrário até que você perceba que deve voltar para o aprisco e às verdes pastagens. É aquela pessoa que não teme perder tempo para educar e aceita os longos processos, do passo a passo único e inspirado para cada pessoa, até conduzi-la à plenitude do seu mistério. E é interessante notar que o acompanhador não só recebe a pedagogia inspirada para cada um, mas também a fé, a misericórdia e a paciência para fazê-lo crescer. A paciência, nesse caso, é a arte de aceitar sofrer as dores de parto para gerar o outro, sem jamais desistir, sem se alarmar quando vê o joio e o trigo crescerem juntos e sendo inspirado para sair a semear a boa Palavra no momento oportuno, sem medir esforços, gerando a alma muito mais pela oração e sacrifícios oferecidos, do que por palavras... São essas as armas invencíveis que Deus nos deu para gerar as almas...

Mas, muitas vezes também, o trabalho do acompanhador espiritual será o de um pai e uma mãe que ensinam a criança a falar. O fato de ser levado a avaliar e refletir sobre a própria vida, sua vocação e sua história, nomeando o que se passa no mais íntimo, já provoca uma forte iluminação interior. E o acompanhador terá dois ouvidos: com um, ele escutará a pessoa e, com o outro, ele deverá escutar as inspirações do Espírito Santo para ajudar aquela alma.

Aceitemos então, entrar nesse caminho interior de abertura da alma! Podemos dizer que o confessor é o médico que cura a alma do pecado e preserva a vida da graça, mas será o acompanhador que assegurará o seu crescimento espiritual. Não esqueçamos jamais que “aquele que se guia a si mesmo torna-se discípulo de um louco”. E com um simples exercício de oração diária aprenderemos a reconhecer a voz do Pai, e o caminho interior ao qual Deus nos quer conduzir, perguntando: 1)“Quem és Tu Pai para mim hoje, Como Te revelas a mim hoje?”; 2) “Quem sou eu para Ti, Pai, hoje? Como me vês, Pai, como me revelas hoje o meu mistério?”; E por último: 3) “Que devo fazer hoje, Pai, nesta situação bem precisa?”. E assim adentramos na Escola do discernimento de cada instante, aprendendo tudo, na intimidade do seio do Pai!

“É preciso viver na própria pele a experiência de interpretar os movimentos do coração para neles reconhecer a ação do Espírito, cuja voz sabe falar à singularidade de cada um. O acompanhamento pessoal requer que se aguce continuamente a própria sensibilidade à voz do Espírito, levando a descobrir nas peculiaridades pessoais um recurso e uma riqueza. Trata-se de favorecer a relação entre a pessoa e o Senhor, colaborando para remover aquilo que a impede.” ²

¹ Processo de Beatificação e Canonização de Sta. Teresinha do Menino Jesus, 284.
² Processo de Beatificação e Canonização de Sta Teresinha do Menino Jesus, 284.

Ir. Maria Sarah é Formadora Geral da Comunidade Sementes do Verbo

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