A caminho da Santa Redenção do Senhor| Palavra do fundador - Abril 2023

 

O mistério da Santa Redenção do Senhor

A Santíssima Trindade, a Encarnação e a Redenção são os três dogmas que constituem os fundamentos do Cristianismo. Estes dogmas de fé são comuns às Igrejas: Católica, Ortodoxa e Protestantes.

O vocabulário da fé católica é rico em palavras teológicas bem precisas e, às vezes, técnicas ao mesmo tempo. Este é o caso da palavra redenção. Para nós, católicos, o Catecismo define o mistério da Redenção nestes termos:

“Toda a vida de Cristo é mistério de redenção. A redenção vem-nos, antes de mais, pelo sangue da cruz. Mas este mistério está atuante em toda a vida de Cristo: já na sua Encarnação, pela qual, fazendo-Se pobre, nos enriquece com a Sua pobreza; na vida oculta que, pela Sua submissão, repara a nossa insubmissão; na palavra que purifica os Seus ouvintes: nas curas e exorcismos dos demônios, pelas quais ‘toma sobre Si as nossas enfermidades e carrega com as nossas doenças’ (Mt 8, 17); na ressurreição, pela qual nos justifica.”

1 A palavra “mistério” vem do grego: “mysterion”, termo frequente na Sagrada Escritura e na liturgia. No uso comum deste termo, indica o que é misterioso e, portanto, uma realidade que escapa à nossa própria compreensão.

Para os fiéis e para a teologia, o sentido da palavra “mistério” não evoca o significado da palavra no uso comum, mas significa mais profundamente a vontade misericordiosa de Deus. Como afirma o Papa Bento XVI:

“Para os crentes, ‘mistério’ não é tanto o desconhecido, como sobretudo a vontade misericordiosa de Deus, o seu desígnio de amor que, em Jesus Cristo, se revelou plenamente e nos oferece a possibilidade de ‘apreender com todos os santos qual é a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, isto é, a capacidade de conhecer o amor de Cristo’ (Ef 3, 18-19). O ‘mistério desconhecido’ de Deus é revelado, e é que Deus nos ama, e nos ama desde o início, desde a eternidade.” 2

A Semana Santa, chamada também a Grande Semana, que neste ano começa no início de abril, é para nós cristãos, a semana mais importante do ano litúrgico. Ela nos permite mergulhar de uma maneira nova nos acontecimentos da Redenção de Nosso Senhor, revivendo com um coração novo o Mistério Pascal, o grande Mistério de nossa fé.

“Sendo sumo sacerdote naquele ano, ele (Caifás) profetizou que Jesus morreria pela nação, e não apenas pela nação, mas para reunir em unidade os filhos dispersos de Deus. A partir daquele dia, portanto, eles decidiram matá-lo.” (Jo 11, 51-53)

“Morrer para congregar na unidade” (cf. Jo 11, 52), esta expressão joanina resume bem a obra de Redenção do Senhor. A palavra redenção vem do latim “redimere”, que significa redimir “Um dos mistérios essenciais do cristianismo: o sacrifício de Jesus na cruz por amor permitiu salvar.

“Um dos mistérios essenciais do cristianismo: o sacrifício de Jesus na cruz por amor permitiu salvar o mundo, ou seja, não ser definitivamente derrotado pelo mal.” 3

A Constituição do Concílio Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia, inspirada nas Escrituras, dá uma apresentação luminosa e essencial da definição da Redenção operada por Cristo:

“Deus, que ‘quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade’ (1 Tm 2, 4), ‘tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos aos nossos pais pelos profetas’ (Hb 1, 1), quando chegou a plenitude dos tempos, enviou o Seu Filho, Verbo feito carne, ungido pelo Espírito Santo, a evangelizar os pobres, curar os contritos de coração, como médico da carne e do espírito, mediador entre Deus e os homens. A sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento da nossa salvação. Por isso, em Cristo ‘se realizou plenamente a nossa reconciliação e se nos deu a plenitude do culto divino’. Esta obra da redenção dos homens e da glorificação perfeita de Deus, prefigurada pelas suas grandes obras no povo da Antiga Aliança, realizou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão, em que ‘morrendo destruiu a nossa morte e ressurgindo restaurou a nossa vida’. Foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de toda a Igreja.” 4

Um Pai da Igreja Oriental, Teodoreto de Ciro (393-457), faz ecoar este grande mistério da Redenção quando escreve:

“Sendo Deus, e Deus por natureza, e tendo a igualdade com Deus, não considerou isto algo de grandioso, como fazem quantos recebem uma honra acima dos seus merecimentos, mas escondendo os seus merecimentos, escolheu a humildade mais profunda e assumiu a forma de um ser humano.” 5

Semana Santa: a mãe das semanas litúrgicas

De fato, o ritmo semanal da assembleia cristã encontra sua fonte nesta Grande Semana.

A tradição oriental enfatizou o mistério da encarnação salvadora. Nossa humanidade, divinizada em Cristo, está unida ao Pai no Espírito. E a liturgia vivida no Espírito é como a experiência do “Céu sobre a Terra”.

A tradição ocidental colocou maior ênfase na dimensão dolorosa e sacrificial de Cristo, enfatizando o significado de Seu sofrimento humano e de Sua morte salvadora através dos sinais e símbolos de expiação, de redenção e de resgate. Na era da globalização, tornou-se mais necessário do que nunca para as nossas comunidades “respirar com os dois pulmões da Igreja: o Oriente e o Ocidente” 6 , como desejava o Papa João Paulo II em sua Carta Encíclica Ut Unum Sint.

Em 1995, São João Paulo II escreveu:
“Coloco-me em atitude de escuta das Igrejas do Oriente, sabendo que são intérpretes vivas do tesouro tradicional que guardam. Contemplando-o, vejo aparecer elementos de grande significado para uma compreensão mais plena e integral da experiência cristã, e, portanto, para dar uma resposta cristã mais completa aos anseios dos homens e das mulheres de hoje.” 7

O Tríduo Pascal tradicionalmente começa com a Santa Missa Crismal Solene, celebrada pelo Bispo juntamente com o seu presbitério, durante a qual são renovadas as promessas sacerdotais pronunciadas no dia da Missa da Ordenação. É sempre durante a Missa Crismal que o Óleo da Unção dos Enfermos e o Óleo dos Catecúmenos são abençoados e o Santo Crisma é consagrado

É desejável que o maior número possível de batizados participem desta missa, que simboliza, particularmente no Ano Litúrgico, a plenitude do Sacerdócio de Cristo e da comunhão eclesial em torno do mesmo Pastor: o Bispo de sua diocese, que reúne e guia o povo cristão, no sacrifício eucarístico e revigorado na unidade pelo dom do Espírito Santo. Os fiéis são encorajados a viver o sacramento da Penitência (pelo menos uma vez por ocasião da Festa da Páscoa).

Na Quinta-feira Santa, a Igreja comemora estas três imensas graças: a instituição da Eucaristia, o sacerdócio ministerial e o mandamento da caridade, deixado por Jesus a Seus discípulos.

São Paulo recorda, aproximadamente vinte e cinco anos depois da primeira Ceia de Jesus, o que ele mesmo recebeu como uma tradição a ser transmitida:

“Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim’. Do mesmo modo, após a ceia, também tomou o cálice, dizendo: ‘Este cálice é a nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim’.” (1Cor 11, 23-25)

É o sacrifício da nova e definitiva Aliança oferecida a todos, sem distinção de pessoas, raça ou cultura. É através desta liturgia sacramental que Cristo oferece à Sua Igreja-Esposa, como prova suprema de Seu amor, os ministros que continuarão seu ministério através dos séculos.

A Quinta-feira Santa celebra o dom supremo da Eucaristia, acolhida com veneração, celebrada e adorada numa fé viva. Após a celebração da Missa, a vigília de oração na presença do Santíssimo Sacramento faz memória da “hora” que Jesus viveu na solidão e na oração no Getsêmani, antes de ser preso e condenado à morte. A Quinta-feira Santa é, por excelência, o dia da celebração da unidade de irmãos e irmãs reunidos na mesma fé.

A Eucaristia é o “cimento” desta santa união fraterna em torno do Bispo, que representa Cristo Pastor, rodeado do presbitério e dos fiéis.

No primeiro século da Igreja, Santo Inácio de Antioquia (35-107) testemunha em suas cartas (aos romanos, aos efésios, aos magnésios, aos filadélfios e aos esmirnenses...), a fé na sacramentalidade da Eucaristia, inseparável da sacramentalidade episcopal:

“Empenhai-vos, por conseguintes, em ter uma só Eucaristia.” 8

“A participação na Eucaristia pressupõe que se discerne nela na fé que o pão e o vinho são a ‘carne’ e o ‘sangue’ de Cristo.” 9

“Finalmente, o elo intrínseco entre Eucaristia e a caridade é claramente estabelecido na mesma carta: aqueles que se abstêm da ‘Eucaristia e da oração’ mostram como não têm ‘nenhuma preocupação com a caridade’.” 10

“Empenhai-vos, por conseguintes, em ter uma só Eucaristia. Pois uma só é a carne de nosso Senhor Jesus Cristo e um só o cálice na unidade do Seu sangue.” 11

Importante ressaltar que no tempo de Santo Inácio de Antioquia, a fé na realidade da Encarnação e da Redenção realizada por Cristo em Sua humanidade é a condição necessária para a participação na Eucaristia.

De fato, os hereges arianos do tempo de Santo Inácio recusaram a Encarnação de Cristo em verdadeira carne. É por isso que eles não se aproximavam da Eucaristia, porque ele diz: “eles não professam que a Eucaristia é a carne do nosso Salvador Jesus Cristo” 12

“Vós vos reunis numa fé (...) para obedecerdes ao bispo e ao presbitério, em concórdia sem contendas, partindo o mesmo pão que é o remédio da imortalidade, o antídoto para não morrer, mas para viver em Cristo Jesus para sempre.” 13

“Considerai legítima a Eucaristia realizada pelo Bispo ou por alguém encarregado por ele.” 14

Esta sacramentalidade do episcopado se estende também aos presbíteros que “ocupam o lugar no senado apóstolos”. 15

“Empenhai-vos, por conseguintes, em ter uma só Eucaristia, pois uma só é a carne de nosso Senhor Jesus Cristo e um só o cálice na unidade do Seu sangue, um só o altar, como um só o bispo com os presbíteros e diáconos.” 16

Sexta-feira Santa é o dia da Paixão e do sacrifício do Senhor na Cruz. Em silêncio diante da Cruz, compreendemos o sentido dessas palavras do Senhor, proferidas no dia anterior: “Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado em favor de muitos” (Mc 14, 24). Incrível sacrifício de Jesus que oferece, pelo Seu sangue derramado, Sua vida em remissão dos pecados da humanidade e de todos os tempos.

Um Deus que não só se faz homem, com todas as necessidades do homem, não só sofre para salvar o homem assumindo toda a tragédia da humanidade, mas morre pelo homem. [...] A paixão do Senhor continua nos sofrimentos dos homens.” 17

Como escreveu o escritor católico Blaise Pascal (1623-1662): “Jesus permanecerá em agonia até ao fim do mundo; não se deve dormir durante este tempo” 18. Em todas as épocas, o valor redentor do sofrimento tem sido um problema para muitos. Outros fiéis vivem este valor redentor como uma ajuda lhes permitindo viver melhor seu próprio sofrimento.

Com a Redenção, o sofrimento assumiu um novo sentido

É compreensível que o sofrimento e a morte violenta de Jesus na Cruz tenha sido um escândalo para os crentes do judaísmo e para os primeiros cristãos. Mas a novidade é que o Cristianismo reconheceu o sofrimento do Salvador crucificado como “redentor”, considerando-o como um sacrifício no qual Ele foi tanto o Sumo Sacerdote quanto a vítima.

Mas qual é então o sentido desta dimensão “redentora”?

Ninguém pode dizer ou pensar que a violência contra alguém possa ser salutar. E não se pode censurar o Evangelho por inclinar-se para o amor ao sofrimento, porque ele não deixa de valorizar a ação divina libertadora e salvadora de Jesus.

A fé cristã, inclusive a teologia da Redenção, tem procurado reconhecer o amor e a presença atuante do Senhor agindo em cada história de sofrimento humano e, de forma singular, no acontecimento da Paixão e Crucificação de Cristo. Deus não é um estranho ao sofrimento, não é Seu autor nem o defensor, tampouco permanece impassível quando ele ocorre.

“Não era necessário que Cristo suportasse estes sofrimentos para entrar em Sua glória?” (Lc 24, 26) No caminho de Damasco, Saulo de Tarso recebe a revelação que o marcará para sempre: perseguindo os cristãos é o próprio Jesus Cristo que ele persegue (cf. At 9, 4-5). Assim, tudo o que foi sofrido pela Cabeça (Cristo) é igualmente válido em tudo o que o Corpo sofre.

Como diz o Cardeal Charles Journet:

“Através de Seu Corpo Místico, Cristo continua a viver nos cristãos. Suas orações, suas ações, seus sofrimentos, mesmo sua morte, tornam-se como um prolongamento de Sua oração, de Suas ações, de Seus sofrimentos, de Sua própria morte” 19

Os sofrimentos de Cristo: tornados “meios de salvação”

O jesuíta e exegeta bíblico Xavier-Léon Dufour (1912-2007) descreve de forma muito esclarecedora as três principais interpretações da morte de Jesus feitas pelos primeiros cristãos.

- A primeira interpretação (que parece ser a mais original): Dá pouca importância à própria morte de Jesus, mas se interessa mais pelo anúncio do Senhor e pela ação de Deus que ressuscita Jesus: “Aquele a quem vós crucificastes, mas a quem Deus ressuscitou dentre os mortos” (At 4, 10). O que é importante aqui não é a morte de Jesus, que é obra dos homens, mas o fato de que Deus o ressuscitou e o fez Senhor (cf. At 2, 14-36).

- A segunda interpretação (de uma comunidade preocupada em dar sentido à tortura e morte do Senhor): No processo da concepção de Deus como Senhor da história, ela coloca a morte e o sofrimento de Jesus dentro do desígnio de Deus – “Não a minha vontade, mas a Tua seja feita” (Lc 22, 42) – e reflete em função do tema do cumprimento das Escrituras: Jesus sofreu e foi crucificado de acordo com o plano de Deus, conforme anunciado nas Escrituras. Mas o Novo Testamento não desenvolve uma reflexão sistemática sobre esta afirmação, ao contrário da teologia posterior.

- A terceira interpretação (diz o sentido e alcance desta morte para cada ser humano): Por nossa causa, por nós e para nossa salvação, Cristo morreu (cf. Lc 22, 19-20; Rm 4, 25; Rm 5, 8), como um dom do próprio Deus “que não poupou Seu próprio Filho, mas O entregou por nós” (Rm 8, 32). Como diz o Evangelho: “O Filho do Homem veio para dar Sua vida em resgate por muitos” (Mc 10, 45; Mt 20, 28) 20.

Foi desde muito cedo, portanto, que os primeiros cristãos e a tradição que seguiam, consideraram a morte de Jesus como um ato “consagrado”, um ato divino a nosso favor e não como uma coincidência ou como o fruto da história humana ou da fatalidade. De acordo com o olhar da fé, Deus age na história e de forma eminente no Gólgota e continua a agir em todos os sofrimentos unidos à Paixão redentora de Cristo.

Charles Journet escreve:

Esta contínua conformação do universo à imagem do Cristo peregrino, esta reconciliação progressiva da criação no Sangue da Cruz, é a Igreja do tempo presente, nossa Igreja” 21.

“É somente nos santos, todos purificados pelo amor, que os sofrimentos satisfatórios começam a se tornar verdadeiramente superabundantes e são capazes de se derramar inteiramente sobre os outros. Transformados em Cristo, como a madeira que se tornou fogo, fazem tudo o que Cristo faz, ensinam com Cristo, são merecedores com Cristo, expiam com Cristo pelos vivos e pelos mortos, salvam o mundo com Cristo.” 22 “A Igreja é o mundo reconciliado”, Santo Agostinho já havia declarado, citando Jo 3, 17: “Deus não enviou Seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo através Dele”. 23

Entretanto, como assinala Charles Journet, é uma questão para todos os fiéis e, portanto, para nós hoje, de aceitar a sutileza de uma “aparente precariedade da graça da redenção” 24.

“A graça Daquele que desejou desposar a dolorosa condição do homem não é dada principalmente para eliminar de nossa vida atual o sofrimento e a morte, os conflitos interiores de concupiscência, as contusões do mundo exterior; esta graça é dada para nos permitir triunfar sobre estas provas na noite da fé e do amor, para iluminá-las e santificá-las.

Isto quer dizer que o Cristo da glória quer tocar a Igreja somente através das feridas de Sua paixão; que a graça que Ele infunde nela se destina em primeiro lugar a santificá-la, não a glorificá-la. Uma tarefa profunda, mas a aparente precariedade da graça da redenção.” 25

A obra redentora de Cristo não consiste em suprimir sistematicamente todo sofrimento. Caso contrário, durante Seu ministério terreno, Jesus teria que curar absolutamente todos os doentes que encontrasse em Seu caminho e ressuscitar todos os mortos da Galileia e da Judeia, o que Ele não fez.

A Via Sacra na Sexta-feira Santa é vivida como uma procissão de fé, de meditação e de intercessão a partir das três horas da tarde (“a nona hora”, a hora da morte de Jesus). Este caminho meditado e rezado é uma oportunidade única de intercessão de fé dos discípulos, mas também de renovação de sua confiança e fidelidade a Jesus no momento de Sua provação suprema.

A Liturgia deste dia nos faz cantar: “O Crux, ave, spes unica!”, “Ave, ó Cruz, esperança única!” 26 A Santa Cruz é particularmente venerada durante a Vigília da Noite.

Na noite de Sexta-feira Santa, nossa Comunidade vive a celebração do sepultamento do Senhor Jesus, a partir do Evangelho de João 19, 38-42. Esta celebração profunda e significativa, herdada da liturgia oriental, é guiada pelas Irmãs Consagradas que, seguindo o exemplo das santas mulheres do Evangelho, as “myrrophores” (as portadoras de perfumes), vão ao túmulo para ungir e embalsamar, com cuidado e amor, o corpo morto do Senhor.

Como diz magnificamente o Papa Bento XVI, é com uma viva consciência da presença da Virgem Maria, em cada mistério do Senhor, que vivemos estes Dias Santos:

“Acompanha-nos neste itinerário a Virgem Santa, que seguiu em silêncio o Filho Jesus até o Calvário, participando com grande dor no Seu sacrifício, cooperando assim no mistério da Redenção e tornandose Mãe de todos os crentes (cf. Jo 19, 25-27). Justamente com ela, entraremos no Cenáculo, permaneceremos aos pés da Cruz, vigiaremos idealmente ao lado do Cristo morto, aguardando com esperança o alvorecer do dia radiante da ressurreição.” 27

Sábado Santo: Então vem o grande silêncio do Sábado Santo, na total ausência dos sinais do Senhor, num profundo vazio. Este dia é vivido como um Kairós. Mas é também dia de repouso de Deus, o sexto dia da Criação. Não devemos esquecer que o sábado para nossos irmãos judeus é o “shabbat”, que começa na noite anterior, a partir da primeira estrela que brilha no céu. É neste cadinho profundo que se prepara a esperança da vida nova que surgirá na noite da Páscoa. Em algumas comunidades cristãs dos primeiros séculos podíamos perceber a coexistência da observância do sábado, seguida da celebração do domingo.

“Devido à ênfase dada à obrigação do descanso festivo, registra-se uma certa tendência à ‘sabatização’ do dia do Senhor. Não faltaram, inclusive, setores da cristandade em que o sábado e o domingo foram observados como ‘dois dias irmãos’.” 28

Neste dia, não devemos evitar a passagem deste grande despojamento litúrgico. Pelo contrário, o dia inteiro deve ser vivido em profundo silêncio e oração.

Neste sentido, é a Igreja que espera em silêncio e se junta a Maria, para receber dela uma melhor e mais profunda confiança em Deus e na esperança do Dia da Ressurreição.

A Vigília Pascal: abre-se com o fogo novo, que, brilhando e rasgando a noite e o luto passado, introduz a solenidade da Vigília Pascal, “Mãe de todas as Vigílias”. Quando se levanta o círio pascal e se canta o Exultet, é então que se retomam os cânticos de vitória e exultação da ressurreição de Cristo em nossas comunidades. Vitória da luz sobre as trevas, da vida sobre a morte, é a Páscoa do Senhor que regozija a Igreja! O Senhor está vivo, Aleluia.

É um Santo Tríduo e uma Divina Liturgia que a Igreja, a cada ano, nos faz viver, sempre mais profundamente unidos ao Mistério de Cristo Redentor e Vitorioso.

“Devemos redescobrir com orgulho o privilégio de poder participar na Eucaristia, que é o sacramento do mundo renovado. A ressurreição de Cristo aconteceu no primeiro dia da semana, que nas Escrituras é o dia da criação do mundo. Precisamente por isto o domingo era considerado pela comunidade cristã dos primeiros tempos como o dia em que teve início o novo mundo, aquele no qual, com a vitória de Cristo sobre a morte, começou a nova criação.” 29

Os cristãos compreenderam muito cedo a diferença entre o Sábado e o novo e definitivo tempo dominical inaugurado por Cristo. Eles o tomaram como um dia de festa, “O Dia do Senhor”, e como o primeiro dia, por causa da Ressurreição do Senhor.

Como São Gregório Magno teve o prazer de assinalar: “Nós consideramos verdadeiro sábado a Pessoa do nosso Redentor, nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Ef 13, 1)” 30.

Domingo de Páscoa: Os Atos dos Apóstolos nos informam que os cristãos se reuniram no dia seguinte ao sábado, na cidade de Trôade (cf. At 20, 7). Na verdade, foi no primeiro dia da semana que o Senhor ressuscitado se mostrou pela primeira vez à Maria Madalena (cf. Jo 20, 1; Mt 28, 1; Mc 16, 2; Lc 24, 1) e aos discípulos, na noite do mesmo dia (cf. Jo 20, 19).

A segunda aparição do Cristo ressuscitado aconteceu como um ato de misericórdia para com o apóstolo Tomé oito dias depois (Jo 20, 26).

“Desde os tempos apostólicos, ‘o primeiro dia depois do sábado’, primeiro da semana, começou a caracterizar o próprio ritmo da vida dos discípulos de Cristo (cf. 1Cor 16, 2). [...] Doravante isto será uma das características que distinguirão os cristãos do mundo circunstante.” 31

Todo domingo é, por excelência, o memorial da Ressurreição e reúne a comunidade cristã com seu Senhor. Esta prática, recebida da Igreja Apostólica, é a matriz do Ano Litúrgico e dos ritmos do tempo cristão.

A designação do domingo como o “primeiro dia da semana” anuncia “o dia que o Senhor o fez” quando encontrou os Seus discípulos; e é um dom a ser recebido incessantemente Dele. O domingo é o memorial da Ressurreição de Cristo que inaugura a Nova Criação.

“São Basílio fala do ‘santo domingo, honrado pela ressurreição do Senhor, primícia de todos os outros dias’. Santo Agostinho chama o domingo ‘sacramento da Páscoa’.” 32

O Messias Ressuscitado dá à Igreja neste Santo Domingo Pascal os dons da paz e da alegria (Jo 20, 19-23), do perdão dos pecados, do sinal das chagas (Jo 20, 26-27), da Eucaristia celebrada e da confissão da fé cristã “aqueles que creem sem ter visto” (cf. Jo 20, 29).

No final desta Divina Liturgia Pascal, o diácono envia os fiéis cantando o amplo aleluia da ação de graças: “Demos graças a Deus Aleluia, Aleluia...”.

O anúncio do Cristo Ressuscitado é então proclamado em várias línguas, primícias da Festa de Pentecostes, que será celebrada cinquenta dias depois: “Nós os ouvimos anunciar em nossas próprias línguas as maravilhas de Deus!” (At 2, 11).

“A ressurreição de Jesus é o dado primordial sobre o qual se apoia a fé cristã (cf. 1Cor 15, 14): estupenda realidade, captada plenamente à luz da fé, mas comprovada historicamente por aqueles que tiveram o privilégio de ver o Senhor ressuscitado; acontecimento admirável que não só se insere, de modo absolutamente singular, na história dos homens, mas que se coloca no centro do mistério do tempo.” 33

O Mistério da Redenção realizada por Cristo

O Papa Bento XVI propõe uma visão contemplativa redentora com um imenso horizonte, em seu livro sobre Jesus de Nazaré:

“Na paixão de Jesus, toda a imundície do mundo entrou em contato com o imensamente Puro, com a alma de Jesus Cristo e, desse modo, com o próprio Filho de Deus. Se habitualmente a realidade suja, através do contato, contagia e mancha a realidade pura, aqui temos o contrário: onde o mundo, com toda a sua injustiça e as crueldades que o mancham, entra em contato com o imensamente Puro, aí Ele, o Puro, revela-Se o mais forte. Nesse contato, a imundície do mundo é realmente absorvida, anulada, transformada por meio do sofrimento do amor infinito.” 34

Mas a nossa Redenção é um objeto de esperança, nós partimos dela, recebida e contemplada aos pés da Cruz, fortalecidos pela Ressurreição, ela que nos será concedida em plenitude quando encontrarmos o Senhor em Sua glória.

O escritor Blaise Pascal nos adverte (1623-1662): que é “perigoso que o homem conheça sua miséria sem conhecer o Redentor que pode curá-lo dela” 35.

É ainda o Papa Bento XVI que nos guia por este caminho de fé e de esperança:

“A redenção ainda não se concluiu – sentimo-lo – mas alcançará o seu pleno cumprimento quando aqueles que Deus resgatou forem totalmente salvos. Nós ainda estamos a caminho da redenção, cuja realidade essencial é dada mediante a morte e a ressurreição de Jesus. Estamos a caminho da redenção definitiva, da plena libertação dos filhos de Deus. E o Espírito Santo é a certeza de que Deus completará o Seu desígnio de salvação, quando reconduzir ‘os tempos à sua plenitude: submeter tudo a Cristo, reunindo Nele o que há no céu e na terra’ (Ef 1, 10). Sobre este ponto, são João Crisóstomo comenta: ‘Deus escolheu-nos para a fé e imprimiu em nós o selo para a herança da glória futura’ 36. Devemos aceitar que o caminho da redenção é também um caminho nosso, porque Deus quer criaturas livres, que digam livremente ‘sim’; mas é acima e antes de tudo um caminho seu. Estamos nas suas mãos e agora temos a liberdade de percorrer o caminho encetado por Ele. Percorremos este caminho da redenção, juntamente com Cristo, e sentimos que a redenção se realiza.” 37

Santa Festa da Páscoa a todos nós que caminhamos juntos para o “primeiro” e “oitavo” dia, o dia da vida eterna, o dia que ninguém deve renunciar, “a paz do repouso, a paz do sábado, uma paz sem ocaso” 38!

 
 
  • 1Catecismo da Igreja Católica, n. 517.

  • 2Bento XVI, Audiência Geral, 20 de junho de 2012.

  • 3Glossário da Igreja Católica na França.

  • 4Conc. Ecum. Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 1963, n. 5.

  • 5Teodoreto de Ciro, Comentário à carta aos Filipenses, 2, 6-7, citado por Papa Bento XVI, Audiência Geral, 08 de abril de 2009.

  • 6Cf. Papa São João Paulo II, Carta Encíclica Ut Unum Sint, 1995, n. 54

  • 7Papa São João Paulo II, Carta Apostólica Orientale Lumen (1995), n. 5.

  • 8 Santo Inácio de Antioquia, Carta aos Filadélfios, 4, 1

  • 9 Santo Inácio de Antioquia, Carta aos Esmirnenses, 7, 2. 10 Ibidem, 7, 1.

  • 11 Idem, Carta aos Filadélfios, 4, 1. 12 Idem, Carta aos Esmirnenses, 7, 1.

  • 13 Idem, Carta aos Efésios, 20, 2. 14 Idem, Carta aos Esmirnenses, 8, 1-2.

  • 15 Idem, Carta aos Magnésios, 6, 1. 16 Idem, Carta aos Filadélfios, 4.

  • 17Papa Bento XVI, Audiência Geral, 8 de abril de 2009.

  • 18Blaise Pascal, Pensamentos, n. 553, citado por Papa Bento XVI, Audiência Geral, 08 de abril de 2009.

  • 19Cardeal Charles Journet, Le Traité de L’Église (Tratado da Igreja), cap. II, I, 3.

  • 20 cf. Xavier-Léon Dufour, Face à la mort, Jésus et Paul, Ed du Seuil, 1979.

  • 21Cardeal Charles Journet, Le Traité de L’Église (Tratado da Igreja), cap. II, I, 4.

  • 22 Ibidem, cap. II, II, 3.

  • 23 Santo Agostinho, Sermão 96, n. 9, citado por Cardeal Charles Journet, Le Traité de L’Église (Tratado da Igreja), cap. II, I, 4.

  • 24Cardeal Charles Journet, Le Traité de L’Église (Tratado da Igreja), cap. II, III, 4.

  • 25 Ibidem

  • 26Aditamento litúrgico ao Hino “Vexilla Regis”: Liturgia das Horas. Citado em Catecismo da Igreja Católica, n. 617.

  • 27Bento XVI, Audiência Geral, 08 de abril de 2009.

  • 28Papa São João Paulo II, Carta Apostólica Dies Domini, 1998, n. 23

  • 29Papa Bento XVI, Homilia na conclusão do Congresso Eucarístico, 29 de maio de 2005.

  • 30 São Gregório Magno, citado por Papa São João Paulo II, Carta Apostólica Dies Domini, 1998, n. 18.

  • 31Papa São João Paulo II, Carta Apostólica Dies Domini (1998), n. 21.

  • 32Papa São João Paulo II, Carta Apostólica Dies Domini (1998), n. 19.

  • 33 Ibidem, n. 2.

  • 34Bento XVI, Jesus de Nazaré, Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição, cap. 8, 3.

  • 35 Blaise Pascal, Preuves par discours III (Laf. 449, Sel. 690).

  • 36 São João Crisóstomo, Homilias sobre a Carta aos Efésios, 2, 11-14

  • 37Papa Bento XVI, Audiência Geral, 20 de junho de 2012.

  • 38 Santo Agostinho, Confissões, Livro XIII, 50.