Viver o retorno à confiança | Palavra do fundador - Maio 2023

 

Viver o retorno à confiança

Neste mês de maio, consagrado à oração mariana, a Igreja é convidada pelo Seu Senhor a entrar no Cenáculo com a Virgem Maria e os Apóstolos. Estaremos reunidos para rezar e meditar durante nove dias (a mãe de todas as novenas), no retiro-seminário de preparação para uma renovação do batismo do Espírito Santo. Esses nove dias têm lugar todos os anos entre a Solenidade da Ascensão do Senhor e o Domingo de Pentecostes (este ano será de 19 a 28 de maio).

Este seminário é um percurso batismal e pentecostal. É uma oportunidade durante o ano para desejar e rezar por uma renovação espiritual em nossa vida pessoal, comunitária e eclesial. Neste ano, peçamos juntos ao Espírito Santo que renove em nós, de forma particular e profunda, a virtude da confiança: confiança em Deus, confiança nos outros, confiança na Igreja e em seus Pastores, confiança em nossa Comunidade.

Necessidade de um retorno à confiança

Numerosas são as passagens bíblicas sobre o tema da confiança em Deus. Nelas o povo crente é chamado a viver e a reviver a confiança, especialmente através das advertências dos profetas de Israel. Esta época pós-pandemia na qual vivemos tem sido marcada por uma “crise de confiança”, seja em relação às instituições públicas, em relação à ciência, à medicina e às vacinas, ou, finalmente, em relação à Igreja como instituição, notadamente com as questões de abusos de confiança em diversos lugares e países.

O Papa Francisco, em 10 de janeiro de 2022, no seu discurso de ano novo ao Corpo Diplomático, falou claramente da necessidade de relançar um modelo de sociedade face à atual “crise de confiança”. Nós mesmos sentimos a necessidade, tanto em nossas consciências como em nossas comunidades, de viver um retorno à confiança.

Michel Maffesoli, sociólogo, especialista em pós-modernidade declara: “Tenho confiança no retorno da confiança!” 1 .

“Com efeito, assim diz o Senhor, o Santo de Israel: Na conversão e na calma estava a vossa salvação, na tranquilidade e na confiança estava a vossa força, mas vós não o quisestes! Mas dissestes: ‘Não, antes, fugiremos a cavalo!’ Pois bem, haveis de fugir. E ainda: ‘Montaremos sobre cavalos velozes!’ Pois bem, os vossos perseguidores serão velozes.” (Is 30, 15-16)

São Francisco de Sales, o santo pastor e Bispo de Genebra (1567-1622), proclamado Doutor da Igreja em 1877, escreveu no século XVII:

“Devemos [...] elevar o nosso coração a Deus por uma santa confiança, cujo fundamento deve estar Nele e não em nós; na medida em que somos levados a mudar enquanto Ele nunca muda, e permanece sempre tão bom e misericordioso tanto quanto somos fracos e imperfeitos como quando somos fortes e perfeitos. Costumo dizer que o trono da misericórdia de Deus é a nossa miséria: devemos, portanto, na medida em que a nossa miséria for maior, ter também maior confiança. [...] — pois a confiança é a vida da alma: tire a confiança, você lhe dá a morte.” 2

A palavra deixada por Santa Faustina Kowalska pode tornar-se a nossa oração também: “Jesus, eu confio em Vós!”

A pandemia da Covid-19 deixou para trás marcas pesadas, entre elas a perda da confiança. Questões sobre o futuro do planeta, as influências climáticas e tantas outras questões pesam muito sobre as gerações mais jovens. E, pouco a pouco, o medo se instala: medo do futuro, medo da globalização, medo do terrorismo, medo do outro, medo de se comprometer e de agir.

O medo torna-se então uma tendência e um reflexo de fechamento sobre si mesmo, um individualismo e uma desconfiança que justificam a inação. Os efeitos pós-pandemia também pesaram muito, tanto sobre as congregações religiosas como sobre as comunidades. Um peso de inércia e apatia tem sido percebido de tal maneira a ponto de desviar a vocação de alguns. Há seis meses, um padre português amigo lamentou a perda de quase 30% dos fiéis nas missas paroquiais.

Para ultrapassar este fato, a confiança, a coragem e a esperança constituem as atitudes fundamentais da existência humana. Elas permitem uma abertura possível para o nosso mundo atual.

Em sua Catequese sobre a oração de 07 de setembro de 2011, o Papa Bento XVI declarou: “A extrema tentação à qual o crente é submetido, é a tentação de perder a fé, a confiança na proximidade de Deus. (...) a tentação contra a fé é a última agressão do inimigo, e a isto temos que resistir” 3 .

Nesse contexto, três reações naturais e humanas produzem os mesmos resultados nocivos que a falta de confiança: a fuga, o espírito do mundo e a idolatria. As três têm em comum o fato de apresentarem um pretexto para se colocarem no centro da realidade, salvando-se a si mesmo, querendo contar só consigo mesmo e, assim, adorando a obra de suas próprias mãos.

A relação que temos com Deus não deve ser uma relação de servidão marcada pelo medo, mas uma relação de aliança, um amor de confiança, uma comunhão de pessoas. Mesmo se nos sentimos pecadores, insuficientes, ingratos, infiéis diante de Deus. Apesar de tudo, Ele “continua a nos amar”

O Papa Francisco, em sua meditação matinal de 14 de março de 2016, confiou uma oração bem simples para ser dita muitas vezes diante de situações incompreensíveis: “Senhor, eu não compreendo, não sei porque acontece isto, mas eu entrego-me a Ti” 4 .

A etimologia da palavra confiança vem do latim “cum” (com) e “fidere” (fé). A confiança está ligada à fé, à fidelidade. O hebraico traduz “amana” (verdadeiro, leal, fiel) de onde provém a palavra para fé e confiança: “amém”.

A “confiança recíproca” é uma grande força na vida das famílias, das comunidades, da Igreja e da sociedade.

Vivendo o Seminário em preparação para um novo Pentecostes, peçamos precisamente ao Espírito Santo uma nova efusão da confiança filial.

De onde vêm as dificuldades em confiar?

Segundo especialistas em psicologia, não há evidências de que a tendência à desconfiança seja necessariamente patológica em si mesma. Por outro lado, uma pessoa que foi abusada no passado certamente tenderá a sofrer uma ferida ou uma certa dificuldade em confiar.

A pessoa que vive a desconfiança de maneira excessiva e sistemática sofre: isolamento, solidão e dificuldades de adaptação na vida comunitária e social, dificuldades que podem ser mais acentuadas em pessoas hipersensíveis.

Mesmo sem ter sofrido um grave abuso de confiança, a desconfiança pode surgir em resposta e como reflexo de situações dolorosas. Por exemplo, quando uma criança pequena vê sua mãe absorvida por outra realidade que não ela própria: ela sofre automaticamente um ato de abandono atribuindo-o à sua mãe, ao passo que, até então, a criança via sua mãe como aquela que a salvava em todas as situações.

Talvez a desconfiança como disposição psíquica foi comunicada à criança por causa dos medos de seus próprios pais. Isto pode acontecer quando a criança é marcada ao seu redor por esse tipo de apreensão lancinante: “Cuidado, cuidado... Não confie em estranhos...”.

Esse tipo de advertências, até compreensíveis para a segurança da criança, podem torná-la permeável à uma desconfiança sistemática, principalmente em relação a alguém que tenha uma figura de autoridade sobre ela. A criança sufocada ou alarmada pela angústia dos pais, pode acabar vendo o mundo exterior (local de trabalho, escola ou comunidade) como um mundo hostil, de inimigos e potenciais agressores.

Encontramos esse fenômeno muito comum em mães que foram brutalmente abandonadas por seus maridos: “Ele me deixou sem dizer uma palavra… todos os homens são covardes!”. Como resultado, a desconfiança em relação aos homens passou como um contágio para as crianças.

Segundo um psiquiatra, os “muito desconfiados” também são pessoas que têm uma visão muito idealizada das relações interpessoais. Hiperexigentes em relação aos outros, eles interpretam a menor falta do outro como uma traição a eles.

A disseminação global da Covid-19 foi acompanhada por uma onda de desinformação e de “fake news”, que minou as respostas médicas e políticas e amplificou a desconfiança e a preocupação dos cidadãos, levando ao surgimento e a propagação de múltiplas e variadas correntes de complotismo, de conspiracionismo e de teorias da conspiração…

Finalmente, notemos os numerosos efeitos naturais da falta de confiança (em si mesmo primeiramente e nos outros) para trabalhá-los da melhor maneira.

Os mais recorrentes são: o medo da crítica, o medo do olhar dos outros, a dúvida de si mesmo, o sentimento de inferioridade e a sensação de sentir-se mal-amado e mal compreendido. A desconfiança provoca a tendência de se comparar constantemente, desvalorizando os outros e a si mesmo..

Oito conselhos para passar da desconfiança à confiança saudável

a) Retornar a uma vida de oração pessoal, comunitária e celebrativa.

b) Apoiar-se sobre um tutor de confiança (seu acompanhador espiritual), sem depender dele.

c) Verificar bem de onde vem esta falta de confiança. Muitas vezes devemos procurar sua origem na infância.

d) Revisitar os pensamentos (depositando-os em Cristo), através de uma boa formação centrada na Palavra de Deus e no Ensinamento da Igreja.

e) Obedecer aos conselhos e exercícios espirituais propostos.

f) Não se instalar na passividade mas, ao contrário, aprender a reagir antes que a indecisão, a hesitação e as dúvidas se instalem.

g) Aprender a relativizar as coisas pouco importantes, guardando na memória as experiências positivas, lembrando que nem todos os seres humanos são necessariamente maliciosos e que ninguém é obrigado a viver sua vida inteira no papel de vítima.

h) Servir, doar-se a si mesmo, tornar-se mais missionário.

Cada um de nós precisa voltar à confiança. Mas ela não deve ser confundida com rearmamento moral ou com um mantra de autopersuasão. A virtude da Esperança, que todo batizado recebeu no batismo, caminha junto com a confiança, elas são como duas irmãs gêmeas.

A Esperança é a virtude que nos coloca a caminho. Ela dá asas à nossa fé para avançar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis. Assim como é através da Fé que realizamos atos (de fé), assim também a Esperança espera que realizemos verdadeiramente atos de confiança, em espírito e em verdade. É então que o Espírito do Senhor toma conta da situação.

“O que está sentado no trono declarou então: ‘Eis que eu faço novas todas as coisas’.” (Ap 21, 5)

O Espírito Santo é verdadeiramente aquele que pode e é capaz de fazer novas todas as coisas em nossas vidas. O exame de consciência é um exercício que nos permite reconhecer as ações do Espírito em nossas vidas e agradecer ao Senhor por cada uma delas. Tudo o que compõe minha vida e meus dias interessa ao Bom Deus! Pois, como declarou Santa Teresa de Lisieux: “É a confiança, e nada mais que a confiança, que deve nos conduzir ao Amor” 5 .

A graça do batismo no Espírito

São Basílio, em seu Tratado sobre o Espírito Santo, lembra claramente o que é o batismo no Espírito, ou seja, “renascer da água e do Espírito”:

“O Senhor, que nos concede a vida, estabeleceu conosco esta aliança no batismo, tipo da morte e da vida. A água é imagem da morte, e o Espírito nos dá o penhor, as primícias da vida. Assim evidencia-se para nós o que procurávamos saber: Por que a água se acha ligada ao Espírito? Porque o batismo tem dupla finalidade: eliminar o corpo de pecado (cf. Rm 6, 6), a fim de não produzir mais frutos de morte (cf. Rm 7, 5), e fazer viver do Espírito, frutificar para a santidade (cf. Rm 6, 22). A água, com efeito, apresenta a imagem da morte, pois acolhe o corpo, à guisa de uma sepultura, enquanto o Espírito infunde a força vivificadora, renovando nossas almas, que retira da morte do pecado e transfere para a vida dos primórdios. É isto o que se chama nascer do alto, na água e no Espírito. A morte se realiza na água, mas o Espírito nos transmite a vida. Em três imersões, e em igual número de invocações, cumpre-se o grande mistério do batismo, para figurar o tipo da morte e iluminar os batizados pela transmissão da ciência de Deus. De fato, se existe na água uma graça, esta não provém da natureza da água, mas origina-se da presença do Espírito. Com efeito, o batismo não consiste em lavarse para tirar manchas carnais, mas em suplicar a Deus uma boa consciência. O Senhor, querendo prepararnos para a vida de ressuscitados, apresenta-nos o modo de viver evangélico, preceituando sermos mansos, resignados, livres do amor do prazer, desprendidos das riquezas, de forma que voluntariamente realizemos desde agora o que o século futuro contém como que naturalmente. (...) Por meio do Espírito Santo realiza-se a restauração do paraíso, a subida ao reino dos céus, o retorno à adoção filial. É ele quem nos dá a ousadia de chamar a Deus de Pai, possibilita-nos participar da graça de Cristo, ter o nome de filhos da luz, partilhar a glória eterna, em uma palavra, recebermos a plenitude da bênção, neste século e no século futuro, e como em espelho contemplar, desde já presente, a graça dos bens que nos estão reservados, conforme as promessas, e cuja fruição aguardamos pela fé. Se, porém, as arras são tais, o que será o dom completo? E se as primícias são tão grandes, que será a plenitude integral?” 6

Queridos irmãos, irmãs e amigos, através do percurso deste Compêndio, que as graças pascais e pentecostais do Senhor transformem vossos corações com uma renovação da confiança e que a Virgem Maria vos guie e acompanhe durante este mês de maio!


Referências:

1Michel Maffesoli, entrevista concedida à revista SOCLE (Société, Confiance & Liberté), “Confiança, a base das sociedades humanas”, n. 2 (abril de 2020).

. 2 São Francisco de Sales, Segunda Entrevista.

3Cf. Papa Bento XVI, Audiência Geral, 07 de setembro de 2011.

4Papa Francisco, Meditações Matutinas, 14 de março de 2016.

5 Santa Teresinha do Menino Jesus, Carta 197, dirigida à Irmã Maria do Sagrado Coração

6 São Basílio de Cesareia, Tratado sobre o Espírito Santo, cap. 15, n. 35-36